De todos os pensamentos filosóficos, o que mais se assemelha às canções de Renato Russo é o platonismo. Renato é platônico tanto nas canções de amor, quanto na política e na ética. Se na vida tinha alguns arroubos emocionais, com excessos sempre muito presentes, o que o pode afastar em tese da teoria de Platão, visto que este propunha uma vida regrada pela racionalidade e não pela emoção e desejos, é também visível que vislumbrava um outro mundo, diferente deste que estava a sua frente. Isto está posto na frase que disse à Dona Carmem certa feita: " mãe, eu não sou daqui". Este sentimento podia-se ver claramente em suas aparições públicas e, notadamente, nas canções.
É comum ouvir a reclamação de que as canções de Renato são pessimistas. O olhar mais apurado, porém, demonstra o contrário, pois os finais das canções normalmente terminam com frases positivas, muito bem representada pela canção "Natália". Esta abordagem,entretanto, farei adiante, apresentando diversas canções em que a verve platônica está presente. Primeiro, quero abordar sobre quem foi Platão e sua teoria para que se possa entender a afirmação de que Renato era platônico.
PLATÃO
Platão foi um filósofo grego, discípulo de Sócrates e seu mais ardoroso seguidor. Foi quem propagou a tese racionalista do mestre, que nada deixou escrito. Ambos viveram numa Grécia que cultivava alguns valores das quais estes filósofos não compartilhavam, pois as virtudes mais valorizadas eram aquelas advindas da emoção, representadas pelo deus Dionísio, da festa e do vinho. Sócrates e Platão partilhavam a ideia de que as melhores virtudes eram as que vinham da razão, depois de um exame de consciência. Buscavam um ponto de verdade sobre as coisas que fosse aceita por todos, depois de uma discussão sobre o assunto. Eram contra os sofistas, grupos de filósofos que relativizavam todas as questões, inclusive o que era verdade, pois esta, segundo eles, não existiria de forma absoluta e, como não existe verdade, qualquer argumento seria válido. Esta discussão, entre outras, acabou por condenar Sócrates a tomar cicuta, um veneno, por ser acusado de subverter e corromper os jovens com essas ideias tidas como nefastas pela sociedade ateniense.
Platão seguiu com esses ensinamentos. Criou uma teoria, chamada de reminiscência. Segundo a tese, existem dois mundos, o mundo das ideias e o mundo sensível. O Mundo das ideias é conhecido da alma, seu habitat natural. Lá pré existem todas coisas de forma perfeita e é dirigido pela razão. Não existem enganos ou erros. O mundo sensível é o que habitamos e pertence ao corpo, dirigido pelos desejos e paixões dos sentidos do corpo. A alma desce para o corpo e, contaminada pelos desejos e paixões próprias do mundo sensível, tudo esquece das coisas coisas boas e plenas do mundo das ideias. O que existe no mundo dos sentidos são apenas cópias imperfeitas do mundo das ideias. A medida que vai tendo contato com as coisas existentes neste plano da existência, a alma vai lembrando de como são as coisas em sua plenitude que conhecia do mundo das ideias. Por se buscar as virtudes do mundo das ideias é que chamamos de idealismo platônico, pois se busca sempre a perfeição inalcançável para este mundo, o que é encontrada apenas no mundo ideal.
E existem três tipos de alma quando estas estão no corpo. A alma concupiscente fica no estômago e se forma quando sucumbe aos desejos voltados para as necessidades básicas tais como a gula e o apetite sexual. A alma irascível pertence ao tórax e evidencia-se no sujeito quando este sucumbe às paixões, estando propenso à ira e bravura, no sentido negativo. A alma racional se encontra na cabeça e conduz o sujeito pelo caminho da racionalidade, este não sucumbe aos desejos do corpo e às paixões, antes domina-os.
Esta teoria mais tarde, serviu de base de pensamento de Santo Agostinho. Assim como no platonismo, a alma desce ao corpo no momento em que nascemos. Ao mundo das ideias Santo Agostinho chamou de pátria celeste, o céu. A terra, como afirma também Platão, seria apenas uma passagem em que a alma deve se manter pura e evitar os excessos, sem se deixar sucumbir pelos desejos da carne e as paixões. As virtudes a serem valorizadas no ser humano são aquelas que passam pelo controle desses atributos. Como se pode notar, tudo o que o racionalismo cristão prega como boa virtude, exige de nós controle dos instintos do corpo e penitência (exame de consciência).
Então, onde encontramos em Renato Russo a busca por este mundo idealizado e perfeito? Por toda a parte. São tantas as canções voltadas para esta visão, seja pelo retorno ao mundo das ideias, seja pela busca do controle dos desejos, que nem sei por onde começar a linha argumentativa. Que tal começar pela obra mais representativa desta verve, chamada Natália?
NATÁLIA
O nome Natália significa nascimento. E nascimento é o início de uma vida. Natália vive num mundo cheio de doenças incuráveis, tragédias radioativas, pesticidas, dores... E estamos todos imersos neste mundo sensível. Somente um novo nascimento (um outro mundo) é capaz de acabar com todos essas mazelas. O mundo de Natália não é daqui ou, pelo menos, não é deste tempo. Isto fica claro no fim da música quando o poeta declara repetidas vezes como um mantra: " E quem sabe um dia eu escreva uma canção para você." Ou seja, o poeta se dispôs a escrever uma canção à Natália, assim como poderia ser qualquer outro nome. A escolha de Natália é fruto de sua genialidade, diga-se depassagem. Acontece que quando olha para o mundo só vê desgraça e sofrimento. Assim começa:
"Vamos falar de pesticidas
E de tragédias radioativas
De doenças incuráveis
Vamos falar de sua vida"...
E assim vai, verso a verso, mostrando o mundo real que está à sua frente. Não encontra neste mundo valências capazes de fazer juz ao que o ser humano Natália merece, seja ela uma musa a quem o poeta reverencia, seja ela uma representante da espécie humana, o que parece o caso, a quem o poeta quer homenagear ao dar o título da canção. Vê apenas a esperança como única alternativa ao dizer nos últimos versos:
"É preciso acreditar num novo dia
No trevo de quatro folhas
Nos meninos e meninas
A escuridão ainda é pior que esta luz cinza
Mas estamos vivos ainda
E quem sabe um dia eu escreva uma canção para você. "
E conclui que só num mundo idealizado, fora do mundo real, encontraria um mundo suficientemente bom. Melhor que Natália, só se o título fosse Renato/Renata, que seria renascer, mas acho que o poeta não quis usar o próprio nome ou homenagear a si próprio.
CLARISSE
Clarisse é outra destas músicas em que o mundo real se apresenta hostil. Viver em dor, ninguém entende, afirma o poeta. A história de uma menina de 14 anos em estado de depressão.
"E Clarisse está sentada no banheiro
E faz marcas no seu corpo
Com seu pequeno canivete .
Seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece.
Enquanto ela se corta ela se esquece
Que é impossível ter da vida calma e força."
A vida real não serve à Clarisse, ela se sente deslocada, fora de lugar:
"Eu sou um pássaro, me trancam na gaiola e querem que eu cante como antes."
Já abordei esta música em outro tópico (Rousseau e Russo) sobre Clarisse ao falar da essência versus existência. Para Platão a essência pertence ao mundo das ideias, assim como a alma e todas as coisas pré-existência terrena. Também habitam o mundo das ideias a bondade, a justiça, o amor e todos os nobres sentimentos em estado de perfeição. Os versos acima demonstram que Clarisse quer se libertar do mundo sensorial, da qual não se vê partícipe, representado pela gaiola, para voltar ao mundo que sente seu. O corpo é a gaiola que a prende, é a sua existência presa ao mundo dos sentidos. Clarisse castiga o corpo como quem arrebenta as grades a fim de libertar sua alma da gaiola para que então possa voltar às origens, o mundo das ideias. Só em um lugar distante, com a alma liberta, já que a dor que sente não é um mal do corpo, é que pode se sentir livre desta dor. Só lá no alto, voando, onde esta dor não a possa alcançar, é que pode ser feliz.
JOÃO ALBERTO
O jovem de DESESSEIS, o Jonnhy, diferente de Clarisse, até era um cara de bem com a vida, todavia, houve o momento em que se deparou com o sentimento de perda. Fugir da realidade e pintar quadros, como o eu-lírico de ACRILIC AN CANVAS, é uma solução recorrente na poesia de Renato Russo. E fugir da realidade em busca de uma outra situação é uma atitude que visa uma outra possibilidade além do real, do mundo sensorial. A frase "e dizem que foi tudo por culpa de um coração partido" deixa claro a informação de que Jonnhy provocou deliberadamente o acidente, pois a própria canção dá a certeza de que "Jonnhy era fera demais pra vacilar assim". Uma paixão desenfreada e não correspondida o fez agir com destemor, estava tomado pelas agruras da alma irascível que o fez colocar a vida em risco, o que perdeu de fato no acidente por ele provocado. A morte se tornaria o lugar de conforto de Jonnhy, seu mundo das ideias. A música ainda traz algo interessante dentro deste viés platônico. Strawberry Fields Forever, que aparece no final sendo cantada pelos colegas de João Alberto no velório é uma música dos Beatles e este lugar é uma praça onde eles usavam como refúgio, onde se sentiam bem. Ali era seu "mundo das ideias". Assim como os garotos da banda de Liverpool tinham o lugar de refúgio deles, parece que Jonnhy encontrou o seu.