domingo, 8 de maio de 2016

SÓCRATES E O BEM VIVER


Viver é refletir



     “Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse:
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa...”

(Há Tempos – Renato Russo)


Na pista: Os que não se contentam com a forma, mas também com o conteúdo


      “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância.”


“A vida sem reflexão é uma espécie de morte.”

“Tendo o mínimo de desejos chega-se mais perto dos deuses.”



SÓCRATES


          Platão e alguns amigos tentavam em vão convencer Sócrates a fugir da prisão. Financiariam sua fuga para longe de Atenas e financiariam também a subsistência dele e da família no exílio. Fariam de tudo para livrá-lo da iminente pena de morte que o julgamento o levaria na manhã seguinte, sob acusação de corromper a juventude e introduzir novos deuses na cidade, eliminando outros. O julgamento, segundo os amigos, era injusto, pois os inimigos de Sócrates usavam da retórica como convencimento para o condenar, sem se importar com a verdade, enquanto Sócrates, embora tivesse capacidade argumentativa maior que a deles todos, se recusava em assim proceder por respeito à sua filosofia. Seria condenado! Todavia, para Sócrates, seria uma morte em vida se procedesse tal como seus inimigos em sua defesa, pois a base de seu pensamento ético era a de que “uma vida sem exame não era digna de ser vivida”, ou seja, não conseguiria conviver com sua consciência se cedesse aos apelos de fuga engendrada por seus amigos. A coragem, uma das virtudes mais consideradas por Sócrates, estaria sendo negada por ele.

     - Pensem, meus amigos... Morrer é uma programação da natureza desde o momento em que nascemos. Vocês conhecem algum lugar em que se possa fugir da morte, que eu possa ir? Tenho 70 anos, daqui pra frente só vislumbro o declínio físico, a falta de memória e o declínio mental. Como arrastar minha família nesta fuga? E aos olhos de Atenas, não assinaria minha culpa se assim procedesse? E a coragem, uma das maiores virtudes que conheço, não estaria eu me afastando dela? Não estaria colocando vocês, meus amigos, numa enrascada, por me ajudarem? Viver bem nos leva a morrer bem! Não quero morrer exilado ou como alguém sem coragem que se renegou ao fazer um belo discurso em sua defesa. Fugir da morte é fácil, quer soldado sabe que basta sair correndo, difícil é fugir da maldade, pois ela é mais veloz que nós.

     - Mas todos sabemos que o faria justificadamente para defender-se de uma injustiça – Alegou Críton.
     - Se assim procedesse também eu, caro Críton, a exemplo de meus acusadores, estaria cometendo uma injustiça contra as leis da cidade. Ao fugir ou ao tentar ludibriar os julgadores em plenário estarei sendo injusto com Atenas. – Respondeu Sócrates.

     - Mas existe mal maior que ser vítima de uma injustiça? – Continuou Críton.

     - Sim! Ser o autor dela. – Respondeu Sócrates.

     Dito isto, os amigos de Sócrates, percebendo seu cansaço e o firme propósito de ir a juízo, resolveram se despedir daquele que tinham por mestre, mesmo que este nunca tenha se posto nesta posição. Sócrates ficou na cela em companhia de outro condenado, de nome Euclides. Um guarda veio lhes trazer comida, entregou primeiro a Euclides e, depois, ao entregar a Sócrates, deixou propositadamente cair no chão, cuspindo em seguida em direção a ela. Sócrates sabia que o soldado agira assim a mando de alguns de seus detratores. Euclides ficou espantado com a cena e ofereceu parte de sua ceia a Sócrates, que agradeceu, mas recusou dizendo não estar faminto.

     - Ainda se fosse comigo, que sou desonesto, eu entenderia o gesto deste guarda, mas não entendo por que agem assim com você, que busca sempre o bem... – Falou Euclides. Depois de uma pausa, continuou: Conheço este guarda, tenho algo para lhe contar sobre ele...

     - O que tens para me contar a respeito dele já passou pelas três peneiras? – Perguntou Sócrates, soltando as mãos da grade e virando-se para o companheiro de cela.
     - Peneiras? Como assim? – Quis saber Euclides.

     - É um filtro que se usa para quando se quer contar algo sobre alguém. É preciso peneirar a informação para que não se cometa nenhuma injustiça. A primeira peneira é a verdade. Certifique-se da veracidade dos fatos. Então passe para a segunda peneira que é a bondade, ou seja, é bom, positivo, o que você tem a contar? A terceira peneira é a utilidade, ou seja, o que você tem a contar traz algum benefício? Se o que você tem a contar é verdade, é bom e útil, me conte, senão, deixa pra lá... Que interesse eu deveria ter?

     - Não te interessa o que eu tenho a dizer sobre o guarda, que te fez o mal? Bom, então não vou contar que tem a ver com a esposa dele e outro homem... – Disse Euclides com sarcasmo.

Sócrates não conteve o sorriso com a malícia empregada por seu parceiro de cela.

     - Bem que me disseste, caro Euclides, que eras desonesto – Sócrates falou, gargalhando.

     - Mesmo depois do guarda te destratar, o defendes? És de outro mundo. – Continuou Euclides.

     - O fato de uma injustiça ser cometida contra mim, Euclides, não me dá o direito de cometê-la contra quem a cometeu primeiro. – Respondeu Sócrates.

      - Caro Sócrates, quero que saibas que aprendi mais contigo hoje, do que em toda a minha vida. – Concluiu Euclides.

     - Não aprendeu de mim, apenas se pôs a refletir e extraiu de si mesmo. Tudo já está aí, dentro de ti. O conhecimento é como um parto, algo que vem à luz, despertado por nosso diálogo... Falou Sócrates, utilizando o último fôlego de suas forças antes que o cansaço o fizesse dormir.

     Na manhã seguinte, o julgamento. Sócrates não escalou seus parentes para lamuriarem em frente aos juízes no intuito de comovê-los, nem outras estratégias comumente usadas para conseguir a absolvição. Pediu apenas que levassem em conta o conteúdo das palavras, das provas e o teor da denúncia, ao invés de se deixaram levar pela retórica rebuscada e artifícios outros de seus acusadores como Metelo, Ânito e Licon.

      Em sua defesa, Sócrates não parecia temer a morte e citou Aquiles que, mesmo alertado por sua mãe de que poderia morrer em sua vingança a Pátroco, preferiu o risco da morte que viver uma vida desonrada ao não cumprir um compromisso que julgava ser seu. Como Aquiles, Sócrates pensava também ele ter uma missão, um compromisso com a verdade. E não se afastaria deste compromisso por temer a sentença de morte. Por isso se negara a fugir como propuseram seus amigos e por isso não usaria em seu julgamento artifícios ilusórios para fugir da condenação, o que seria desonroso e contra sua filosofia.

     No fim, Sócrates, acusado por Metelo de ser um demônio, corruptor da juventude e ateu, foi condenado por 281 votos a 220 de um tribunal de 501 membros a tomar Cicuta, um veneno, caso não se retratasse frente a sociedade ateniense e deixasse de fazer as perguntas que costumava fazer e que tanto constrangia a todos. Assim, Sócrates resolveu agir com a coragem de Aquiles.

     - Antes de me encaminhar para o cumprimento da sentença, peço que cuidem de meus filhos e os repreendam se verificar que eles estão a tornar-se materialistas, pretensiosos ou inúteis... Aconselhou Sócrates.
Depois continuou:

     - Não se felicitem por terem se livrado de um perturbador. Minha condenação não os honra, pois há mais perda que ganho para Atenas com a morte de Sócrates. – Discursou ele na terceira pessoa.

      Sócrates se encaminhou para a sala onde haveria de ingerir o veneno. Acompanhado de seus seguidores e, diante da lamúria deles, continuou ensinando:

    - Não chorem pela minha morte, afinal, quem garante que a morte é necessariamente um mal? Vejo duas possibilidades: Se ela for um sono sem sonhos, em que a alma dorme com o corpo, melhor para os maus, que não sofrerão pena alguma após a morte e, para mim, que busquei o bem, tanto faz, pois estarei dormindo sem nada sentir. Se, por outro lado, a morte servir de passagem para uma outra vida, espero ansioso ser julgado pelos juízes da alma, os quais considero mais justos que aqueles que acabaram de me condenar, pois ao contrário deles, são deuses, eternos, imunes aos enganos. De qualquer forma, a morte para mim é um ganho, pois, avaliando fisicamente, só terei perdas a partir de agora, pois estou velho e, avaliando espiritualmente, os deuses me farão justiça ao sentenciar minha alma, pois vivi para a prática do bem e por isso morro bem...  Pois bem, é hora de ir: eu para morte, e vós para a vida. Quem de nós irá para o melhor lugar é obscuro a todos, menos a Deus.

      Então Sócrates bebeu da Cicuta e continuou a ensinar até que se viu diante da ponte de Hades...


     LIÇÕES DO MESTRE

Sócrates nunca se colocou na posição de mestre e esta era exatamente a posição inicial de sua filosofia ao dizer “só sei que nada sei”. Com a frase, Sócrates inicia sua posição contrária aos valores vigentes em sua época, sugerindo a troca da soberba dos vencedores pela humildade, por exemplo, como algo a ser atingido pelo ser humano virtuoso. A coragem, tão apreciada na Grécia, não podia ser vista a partir de uma vitória sobre o inimigo, mas a partir da vitória sobre o medo. A bravura não estava na vitória, mas na luta. O ideário preconizado por Dionísio, deus do vinho e da festa, que valorizava o emocional e as virtudes que partem deste ideário, deveriam ser trocadas pelo ideário de Apolo, deus da razão, e pelas virtudes oriundas dela. Em outras palavras, virtudes como compaixão, piedade, misericórdia, prudência, humildade, são consideradas hoje virtudes porque Sócrates as considerou como tal e nos ensinou a vivenciá-las em detrimento àquelas oriundas da paixão, tão valorizadas em sua época, na figura de Dionísio. Algumas figuras históricas, entre eles Jesus Cristo, continuaram a difundir este novo conceito de bem viver, onde a razão se sobrepõe à emoção como leme-guia de nossas ações. Então, Sócrates no convida a refletir. Diz que o mal existe por ignorância e que o conhecimento é o único caminho para a prática do bem e que o único jeito de chegar ao conhecimento é através da reflexão. No entanto, mais importante que o conhecimento é o auto-conhecimento, pois é ele quem valida o conhecimento, através de sua prática. Conhecer é fazer o bem! A máxima “só sei que nada sei” é trocada por “conhece-te a ti mesmo” nesta fase do processo. A grande contribuição de Sócrates, portanto, é de colocar um senso de dever em nossas ações ao dizer que quem conhece o mal não tem o direito de errar; em outras palavras, ele põe a mão na ferida dos poderosos de Atenas. Os mitos gregos contavam que bastava colocar as moedas nos olhos dos mortos para que o balseiro fisesse a travessia, Sócrates, porém, mostrou-lhes que haveria o julgamento dos deuses (ou Deus) e estes não podem ser comprados, pois os deuses atuam com a perfeita justiça. Não é pouca coisa, pois muda-se completamente o conceito de bem. A riqueza, por exemplo, passa a valer menos que a bondade, pois como Sócrates disse: “É fácil fugir da morte (ou de um compromisso) qualquer soldado sabe que basta sair correndo, mas não podemos fugir da maldade, porque a maldade é mais veloz que nós.” Em outras palavras, como não há jeito de fugir da maldade, é nosso dever enfrentá-la e vencê-la, já que a outra opção é se entregar a ela. É fácil praticar o mal, difícil é praticar o bem. Praticar o bem significa deixar de lado algumas práticas voltadas para a riqueza e prazeres deste mundo e passageiras para impor à vida de cada pessoa um senso de consciência de ações voltadas para virtudes duradouras como prudência, serenidade, amorosidade… E quem julgaria esta vivência? Os deuses (ou Deus), que levariam em conta não a hierarquia social ocupada ou a riqueza conquistada, mas os atributos pessoais. Os poderosos de Atenas não aceitaram esta nova visão. Acusaram Sócrates de corromper a juventude com seu discurso e o impuseram a escolha entre renunciar sua visão ou morrer. Como um soldado que não foge de sua missão, Sócrates preferiu a coragem à covardia, preferiu enfrentar a maldade e vencê-la dentro de si do que fugir dela, preferiu a morte honrada em defesa da verdade, que a vida desonrada pela covardia.



Na Pista do Dj Sócrates

Sócrates é do tipo de Dj que gosta de música com letra bem acabada e traga consigo não somente o ritmo, mas também privilegie a reflexão. Gosta daquelas que cutucam nas feridas sociais e pessoais.

O som começaria talvez, com a música “Admirável Gado Novo” que fala de um “povo marcado” indo pro abate, porque não reflete e não contesta sua sina.

Depois entraria com “Televisão”, da Rita Lee cantando: “A televisão me deixou burra, muito burra demais. E agora todos os sons me parecem iguais”.

Paralamas do Sucesso teriam lugar com músicas como “O Beco” e “Alagados”, assim como Engenheiros do Hawaii e sua “Toda Forma de Poder”.

Chegaria a vez de Gabriel, o pensador, mais pelas perguntas que pelas respostas, como é o caso da música “Até Quando?” em que diz: “Até quando você vai ficar usando rédea? Rindo da própria tragédia?” Também estaria na lista “Lavagem cerebral” e “Pra Onde Vai?” , além de “Fé na Luta” que diz: “Hoje eu vim pra te mostrar que o bem é mais forte que o mal”.

As grandes estrelas da noite seriam Chico Buarque e Milton Nascimento.

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