Viver é refletir
“Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse:
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa...”
(Há Tempos – Renato Russo)
Na pista: Os que não se contentam com a forma, mas também com o conteúdo
“Sábio é
aquele que conhece os limites da própria ignorância.”
“A vida sem
reflexão é uma espécie de morte.”
“Tendo o
mínimo de desejos chega-se mais perto dos deuses.”
SÓCRATES
Platão e alguns amigos tentavam em vão convencer Sócrates a fugir da
prisão. Financiariam sua fuga para longe de Atenas e financiariam também a
subsistência dele e da família no exílio. Fariam de tudo para livrá-lo da
iminente pena de morte que o julgamento o levaria na manhã seguinte, sob
acusação de corromper a juventude e introduzir novos deuses na cidade,
eliminando outros. O julgamento, segundo os amigos, era injusto, pois os
inimigos de Sócrates usavam da retórica como convencimento para o condenar, sem
se importar com a verdade, enquanto Sócrates, embora tivesse capacidade
argumentativa maior que a deles todos, se recusava em assim proceder por
respeito à sua filosofia. Seria condenado! Todavia, para Sócrates, seria uma
morte em vida se procedesse tal como seus inimigos em sua defesa, pois a base
de seu pensamento ético era a de que “uma vida sem exame não era digna de ser
vivida”, ou seja, não conseguiria conviver com sua consciência se cedesse aos
apelos de fuga engendrada por seus amigos. A coragem, uma das virtudes mais
consideradas por Sócrates, estaria sendo negada por ele.
- Pensem,
meus amigos... Morrer é uma programação da natureza desde o momento em que
nascemos. Vocês conhecem algum lugar em que se possa fugir da morte, que eu
possa ir? Tenho 70 anos, daqui pra frente só vislumbro o declínio físico, a
falta de memória e o declínio mental. Como arrastar minha família nesta fuga? E
aos olhos de Atenas, não assinaria minha culpa se assim procedesse? E a
coragem, uma das maiores virtudes que conheço, não estaria eu me afastando
dela? Não estaria colocando vocês, meus amigos, numa enrascada, por me
ajudarem? Viver bem nos leva a morrer bem! Não quero morrer exilado ou como
alguém sem coragem que se renegou ao fazer um belo discurso em sua defesa.
Fugir da morte é fácil, quer soldado sabe que basta sair correndo, difícil é
fugir da maldade, pois ela é mais veloz que nós.
- Mas
todos sabemos que o faria justificadamente para defender-se de uma injustiça –
Alegou Críton.
- Se assim procedesse também eu, caro
Críton, a exemplo de meus acusadores, estaria cometendo uma injustiça contra as
leis da cidade. Ao fugir ou ao tentar ludibriar os julgadores em plenário
estarei sendo injusto com Atenas. – Respondeu Sócrates.
- Mas existe mal maior que ser vítima de uma
injustiça? – Continuou Críton.
- Sim! Ser
o autor dela. – Respondeu Sócrates.
Dito isto,
os amigos de Sócrates, percebendo seu cansaço e o firme propósito de ir a
juízo, resolveram se despedir daquele que tinham por mestre, mesmo que este
nunca tenha se posto nesta posição. Sócrates ficou na cela em companhia de
outro condenado, de nome Euclides. Um guarda veio lhes trazer comida, entregou
primeiro a Euclides e, depois, ao entregar a Sócrates, deixou propositadamente
cair no chão, cuspindo em seguida em direção a ela. Sócrates sabia que o
soldado agira assim a mando de alguns de seus detratores. Euclides ficou
espantado com a cena e ofereceu parte de sua ceia a Sócrates, que agradeceu,
mas recusou dizendo não estar faminto.
- Ainda se
fosse comigo, que sou desonesto, eu entenderia o gesto deste guarda, mas não
entendo por que agem assim com você, que busca sempre o bem... – Falou
Euclides. Depois de uma pausa, continuou: Conheço este guarda, tenho algo para
lhe contar sobre ele...
- O que
tens para me contar a respeito dele já passou pelas três peneiras? – Perguntou
Sócrates, soltando as mãos da grade e virando-se para o companheiro de cela.
-
Peneiras? Como assim? – Quis saber Euclides.
- É um filtro que se usa para quando se quer
contar algo sobre alguém. É preciso peneirar a informação para que não se
cometa nenhuma injustiça. A primeira peneira é a verdade. Certifique-se da
veracidade dos fatos. Então passe para a segunda peneira que é a bondade, ou
seja, é bom, positivo, o que você tem a contar? A terceira peneira é a
utilidade, ou seja, o que você tem a contar traz algum benefício? Se o que você
tem a contar é verdade, é bom e útil, me conte, senão, deixa pra lá... Que
interesse eu deveria ter?
- Não te
interessa o que eu tenho a dizer sobre o guarda, que te fez o mal? Bom, então
não vou contar que tem a ver com a esposa dele e outro homem... – Disse
Euclides com sarcasmo.
Sócrates não conteve o sorriso com a malícia
empregada por seu parceiro de cela.
- Bem que
me disseste, caro Euclides, que eras desonesto – Sócrates falou, gargalhando.
- Mesmo
depois do guarda te destratar, o defendes? És de outro mundo. – Continuou
Euclides.
- O fato
de uma injustiça ser cometida contra mim, Euclides, não me dá o direito de
cometê-la contra quem a cometeu primeiro. – Respondeu Sócrates.
- Caro
Sócrates, quero que saibas que aprendi mais contigo hoje, do que em toda a
minha vida. – Concluiu Euclides.
- Não
aprendeu de mim, apenas se pôs a refletir e extraiu de si mesmo. Tudo já está
aí, dentro de ti. O conhecimento é como um parto, algo que vem à luz,
despertado por nosso diálogo... Falou Sócrates, utilizando o último fôlego de
suas forças antes que o cansaço o fizesse dormir.
Na manhã
seguinte, o julgamento. Sócrates não escalou seus parentes para lamuriarem em
frente aos juízes no intuito de comovê-los, nem outras estratégias comumente
usadas para conseguir a absolvição. Pediu apenas que levassem em conta o conteúdo
das palavras, das provas e o teor da denúncia, ao invés de se deixaram levar
pela retórica rebuscada e artifícios outros de seus acusadores como Metelo,
Ânito e Licon.
Em sua
defesa, Sócrates não parecia temer a morte e citou Aquiles que, mesmo alertado
por sua mãe de que poderia morrer em sua vingança a Pátroco, preferiu o risco
da morte que viver uma vida desonrada ao não cumprir um compromisso que julgava
ser seu. Como Aquiles, Sócrates pensava também ele ter uma missão, um
compromisso com a verdade. E não se afastaria deste compromisso por temer a
sentença de morte. Por isso se negara a fugir como propuseram seus amigos e por
isso não usaria em seu julgamento artifícios ilusórios para fugir da
condenação, o que seria desonroso e contra sua filosofia.
No fim,
Sócrates, acusado por Metelo de ser um demônio, corruptor da juventude e ateu,
foi condenado por 281 votos a 220 de um tribunal de 501 membros a tomar Cicuta,
um veneno, caso não se retratasse frente a sociedade ateniense e deixasse de
fazer as perguntas que costumava fazer e que tanto constrangia a todos. Assim,
Sócrates resolveu agir com a coragem de Aquiles.
- Antes de
me encaminhar para o cumprimento da sentença, peço que cuidem de meus filhos e
os repreendam se verificar que eles estão a tornar-se materialistas,
pretensiosos ou inúteis... Aconselhou Sócrates.
Depois continuou:
- Não se
felicitem por terem se livrado de um perturbador. Minha condenação não os
honra, pois há mais perda que ganho para Atenas com a morte de Sócrates. –
Discursou ele na terceira pessoa.
Sócrates
se encaminhou para a sala onde haveria de ingerir o veneno. Acompanhado de seus
seguidores e, diante da lamúria deles, continuou ensinando:
- Não
chorem pela minha morte, afinal, quem garante que a morte é necessariamente um
mal? Vejo duas possibilidades: Se ela for um sono sem sonhos, em que a alma
dorme com o corpo, melhor para os maus, que não sofrerão pena alguma após a
morte e, para mim, que busquei o bem, tanto faz, pois estarei dormindo sem nada
sentir. Se, por outro lado, a morte servir de passagem para uma outra vida,
espero ansioso ser julgado pelos juízes da alma, os quais considero mais justos
que aqueles que acabaram de me condenar, pois ao contrário deles, são deuses,
eternos, imunes aos enganos. De qualquer forma, a morte para mim é um ganho,
pois, avaliando fisicamente, só terei perdas a partir de agora, pois estou
velho e, avaliando espiritualmente, os deuses me farão justiça ao sentenciar
minha alma, pois vivi para a prática do bem e por isso morro bem... Pois
bem, é hora de ir: eu para morte, e vós para a vida. Quem de nós irá para o
melhor lugar é obscuro a todos, menos a Deus.
Então
Sócrates bebeu da Cicuta e continuou a ensinar até que se viu diante da ponte
de Hades...
LIÇÕES DO MESTRE
Sócrates nunca se colocou na posição de mestre e esta era exatamente a
posição inicial de sua filosofia ao dizer “só sei que nada sei”. Com a frase,
Sócrates inicia sua posição contrária aos valores vigentes em sua época,
sugerindo a troca da soberba dos vencedores pela humildade, por exemplo, como
algo a ser atingido pelo ser humano virtuoso. A coragem, tão apreciada na
Grécia, não podia ser vista a partir de uma vitória sobre o inimigo, mas a
partir da vitória sobre o medo. A bravura não estava na vitória, mas na luta. O
ideário preconizado por Dionísio, deus do vinho e da festa, que valorizava o
emocional e as virtudes que partem deste ideário, deveriam ser trocadas pelo
ideário de Apolo, deus da razão, e pelas virtudes oriundas dela. Em outras
palavras, virtudes como compaixão, piedade, misericórdia, prudência, humildade,
são consideradas hoje virtudes porque Sócrates as considerou como tal e nos
ensinou a vivenciá-las em detrimento àquelas oriundas da paixão, tão
valorizadas em sua época, na figura de Dionísio. Algumas figuras históricas,
entre eles Jesus Cristo, continuaram a difundir este novo conceito de bem
viver, onde a razão se sobrepõe à emoção como leme-guia de nossas ações. Então,
Sócrates no convida a refletir. Diz que o mal existe por ignorância e que o
conhecimento é o único caminho para a prática do bem e que o único jeito de
chegar ao conhecimento é através da reflexão. No entanto, mais importante que o
conhecimento é o auto-conhecimento, pois é ele quem valida o conhecimento,
através de sua prática. Conhecer é fazer o bem! A máxima “só sei que nada sei”
é trocada por “conhece-te a ti mesmo” nesta fase do processo. A grande
contribuição de Sócrates, portanto, é de colocar um senso de dever em nossas
ações ao dizer que quem conhece o mal não tem o direito de errar; em outras
palavras, ele põe a mão na ferida dos poderosos de Atenas. Os mitos gregos
contavam que bastava colocar as moedas nos olhos dos mortos para que o balseiro fisesse a travessia, Sócrates, porém, mostrou-lhes que haveria o julgamento dos
deuses (ou Deus) e estes não podem ser comprados, pois os deuses atuam com a
perfeita justiça. Não é pouca coisa, pois muda-se completamente o conceito de
bem. A riqueza, por exemplo, passa a valer menos que a bondade, pois como
Sócrates disse: “É fácil fugir da morte (ou de um compromisso) qualquer soldado
sabe que basta sair correndo, mas não podemos fugir da maldade, porque a
maldade é mais veloz que nós.” Em outras palavras, como não há jeito de fugir
da maldade, é nosso dever enfrentá-la e vencê-la, já que a outra opção é se
entregar a ela. É fácil praticar o mal, difícil é praticar o bem. Praticar o
bem significa deixar de lado algumas práticas voltadas para a riqueza e
prazeres deste mundo e passageiras para impor à vida de cada pessoa um senso de
consciência de ações voltadas para virtudes duradouras como prudência,
serenidade, amorosidade… E quem julgaria esta vivência? Os deuses (ou Deus),
que levariam em conta não a hierarquia social ocupada ou a riqueza conquistada,
mas os atributos pessoais. Os poderosos de Atenas não aceitaram esta nova
visão. Acusaram Sócrates de corromper a juventude com seu discurso e o
impuseram a escolha entre renunciar sua visão ou morrer. Como um soldado que
não foge de sua missão, Sócrates preferiu a coragem à covardia, preferiu
enfrentar a maldade e vencê-la dentro de si do que fugir dela, preferiu a morte
honrada em defesa da verdade, que a vida desonrada pela covardia.
Na Pista do Dj Sócrates
Sócrates
é do tipo de Dj que gosta de música com letra bem acabada e traga consigo não
somente o ritmo, mas também privilegie a reflexão. Gosta daquelas que cutucam
nas feridas sociais e pessoais.
O
som começaria talvez, com a música “Admirável Gado Novo” que fala de um “povo
marcado” indo pro abate, porque não reflete e não contesta sua sina.
Depois
entraria com “Televisão”, da Rita Lee cantando: “A televisão me deixou burra,
muito burra demais. E agora todos os sons me parecem iguais”.
Paralamas
do Sucesso teriam lugar com músicas como “O Beco” e “Alagados”, assim como
Engenheiros do Hawaii e sua “Toda Forma de Poder”.
Chegaria
a vez de Gabriel, o pensador, mais pelas perguntas que pelas respostas, como é
o caso da música “Até Quando?” em que diz: “Até quando você vai ficar usando
rédea? Rindo da própria tragédia?” Também estaria na lista “Lavagem cerebral” e
“Pra Onde Vai?” , além de “Fé na Luta” que diz: “Hoje eu vim pra te mostrar que
o bem é mais forte que o mal”.
As
grandes estrelas da noite seriam Chico Buarque e Milton Nascimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário