Viver é Idealizar
“Vamos fugir
deste lugar, baby!
Vamos fugir…
… Pra onde
eu só veja você
Você veja a
mim só…
… Qualquer
outro lugar comum
Outro lugar
qualquer…
… Qualquer
outro lugar ao sol
Outro lugar
ao sul
Céu azul,
céu azul
Onde haja só
meu corpo nu
Junto ao seu
corpo nu…
… Vamos
fugir
Pra onde
haja um tobogã
Onde a gente
escorregue…”
(Gilberto
Gil)
Na pista: Os que são capazes de sonhar.
PLATÃO
“Quem ama
extremamente, deixa de viver em si e vive no que ama.”
“O que faz
andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê...”
“O corpo
humano é a carruagem. Eu, o homem que a conduz. O pensamento, as rédeas. Os
sentimentos, os cavalos.”
"O
corpo é o cárcere da alma, que anseia em se libertar dele"
Platão havia chorado a morte de seu mestre Sócrates com desconsolo e
tristeza imensuráveis. Em uma das mãos segurava uma adaga e no coração uma
vontade de jogar-se sobre ela a fim de dar cabo também de sua vida, que agora
parecia não mais fazer sentido, tamanho seu desprezo pela injúria social
sofrida por seu educador. O que fez com que não tomasse a decisão de matar-se
foram os ensinamentos do mestre, pois aprendera que não poderia ser injusto com
os deuses que lhe deram a vida de presente. Então, pensou que dali por diante
haveria de dar sentido a esta sua vida. Haveria de escrever para a posteridade
o que aprendera de Sócrates, um propósito bem maior que o suicídio pensado até
há pouco e uma forma mais honrosa de lidar com tamanha dor. As palavras finais
do velho mestre, pautadas pela certeza do justo julgamento dos deuses, antes de
morrer, serviam de alento ao coração do jovem Platão.
Tempos depois estava a ensinar em seu educandário sobre o espaço da
razão como timoneira de nossas decisões, suprimindo os enganos dos sentidos.
Contava aos alunos sobre um homem que fugira das cavernas, lugar onde ele os
demais prisioneiros só conheciam as sombras dos seres que eram projetadas em
seu fundo. Vencera o poder do medo do mito que se espalhara de que quem
deixasse a caverna ficaria louco, não podendo mais retornar, pois a loucura era
contagiosa. O destemido homem, sem dar ouvidos a este mito, partiu rumo ao
desconhecido e descobriu um mundo novo fora da caverna, cheio de luz. Ansioso
por contar a novidade aos outros habitantes da caverna, correu de volta para
ela a fim de libertar aquelas pessoas do mundo das sombras. Chegando lá, eles o
receberam como um louco e, precavidos pelo medo de se contagiarem com tal
loucura, o mataram.
-
Este homem, meus jovens, era Sócrates, que tentou mostrar a todos um caminho de
luz; no entanto, Atenas preferiu matá-lo à seguí-lo. – Discursou Platão.
Os alunos ainda continuavam embevecidos com a história contada, então
Platão continuou a falar de sua tese da existência de dois mundos distintos: o
Mundo das Ideias, de onde se origina a alma e o Mundo dos Sentidos, próprio do
corpo. Segundo sua tese, para cada ser existente no Mundo Sensível existe
eternamente um ser perfeito no Mundo das Ideias, ou seja, os seres existentes
no Mundo Sensível são cópias imperfeitas do Mundo das Ideias. A alma ao descer
para o corpo esquece das coisas belas e no decorrer da vida passar por um
processo de reminiscência, pois vendo as cópias vai relembrando dos seres
perfeitos existentes no Mundo das Ideias. Enquanto isso, o corpo seria a prisão
da alma, que anseia em voltar para o mundo das ideias. Em outras palavras, só
se pode ser feliz nesta outra dimensão, num mundo idealizado, onde só a razão,
assim como a alma, pode alcançar.
-
As sombras da caverna representam os sentidos. Não devemos nos deixar guiar por
eles porque não são confiáveis, não são reais... São como as sombras projetadas
e, portanto, não podem ser fontes do conhecimento. Em outras palavras, não
devem ser leme para a direção de nossas decisões; antes, devem estar pautadas
pelo leme da razão.
Um de seus alunos, porém, não estava convencido por completo do que
Platão acabara de falar e arriscou contrariá-lo:
-
Mestre, amo-o, bem sabes... – tomou a palavra Aristóteles – Mas como você
próprio nos ensinou, devo amar mais a verdade. Não consigo fazer esta separação
entre corpo e alma, pois somos um todo. É certo de que a razão deve ser a
condutora de nossas ações, pois é sua tarefa controlar os instintos e as
paixões. No entanto, não há nada da qual conhecemos que não tenha passado pela
experiência dos sentidos.
-
Você concorda que todo conhecimento, para ser tratado como tal, deva ser
verdadeiro? – Perguntou Platão.
- Com certeza mestre, todo conhecimento só pode ser visto como tal se
for reconhecidamente verdadeiro e bem fundamentado. – Respondeu Aristóteles.
- Então, entras em contradição, pois confias nos sentidos como meio de
conhecimento, mas não confias neles para guiar sua vida. Pois bem, faço uma
pergunta à turma – propôs Platão – quantos aqui gostam mais do inverno que do
verão?
A turma se dividiu mediante as alternativas, uns preferindo o verão e
outros o inverno, cada qual alegando o motivo da preferência. Então, Platão
voltou a perguntar:
- Quantos preferem maçãs a uvas?
Uma nova divisão de opiniões se estabeleceu.
- Como podem observar, os sentidos não são um meio seguro de se
estabelecer uma verdade, já que eles se tornaram fonte de distintas
opiniões; portanto, não podem ser visto
como meios de conhecimento irrefutável. Os sentidos nos dão recursos para uma
opinião tão somente, não mais do que isto.
- Mas os sentidos são os instrumentos que nos levam a conhecer os
cheiros, os sabores, os odores... - Continuou Aristóteles.
- Os sentidos apenas reproduzem um conhecimento que já temos dentro de
nós através da alma. Nós já conhecemos tudo através dela e cada coisa que
experimentamos é apenas uma forma de relembrá-la do bem, da beleza, da justiça,
do amor e tantos outros valores que nascem com a gente. - Explicou Platão.
- Pois eu penso, apesar de crer que há atributos essenciais a cada ser,
que precisamos ser educados para a virtude, pois não somos virtuosos por
natureza, mas aprendemos a sê-lo através da educação. Nossa alma precisa, assim
como nosso corpo, passar pelos mecanismos da educação para tornar-se também ela
virtuosa.
Aproveitando que a aula era ao ar livre, Platão, como de costume, usou
elemento ali presente para defender sua tese:
- Estão vendo aquele barco navegando? Pois bem... Se confiarmos apenas
nos nossos sentidos, neste caso os nossos olhos, diríamos que é a vela quem
empurra o barco e o faz mover. Entretanto, sabemos que é o vento, que não
vemos, o elemento propulsor que verdadeiramente move o barco. E quem me informa
sobre este conhecimento? É a razão!
- Professor, está boa a discussão, mas eu preciso fazer as necessidades
fisiológicas. Estou autorizado a ir até aqueles arbustos lá embaixo para
responder a este chamado da natureza? - Pediu Aristóteles.
- Claro, vá lá... E aproveite este tempo ocioso para refletir – Falou
Platão sorrindo.
Ao ver Aristóteles se afastar, Platão propôs ao demais educandos pregar
uma peça em Aristóteles. Todos deveriam se esconder e esperar ele voltar a fim
de deixá-lo indeciso sobre aonde teriam ido. Depois de algum tempo Aristóteles
retornou, olhou para um lado, para outro, coçou a cabeça... Depois falou:
-
Ei, vamos lá, apareçam... Eu sei que vocês estão por aí!
Platão foi o primeiro a sair do esconderijo.
-
Você viu algum de nós escondido entre as pedras e arbustos? - Perguntou.
-
Não. - Respondeu Aristóteles.
-
Sentiu nosso cheiro ou de alguém em particular? - Continuou Platão.
-
Também não – voltou a responder.
-
Alguma vez já fizemos esta brincadeira em aula para depreender que estávamos por
aqui ainda? - Insistiu
-
Que eu me lembre, não!
-
Você, Aristóteles, não nos avistou, tampouco sentiu nosso cheiro, jamais passou
por esta experiência de ver toda a turma se esconder e, mesmo assim, afirmou
saber nosso paradeiro quando disse: “Eu sei que vocês estão aí”. Como
sabia? Como chegou a esta conclusão?
-
Acredito que tenha sido intuição... Arriscou Aristóteles.
-
Não, não foi a intuição, mas a razão quem lhe disse que estávamos por perto
mesmo sem você ter passado por esta experiência anteriormente.Então, se a razão
é quem nos dá a sabedoria de enxergar o que os olhos não veem, de sentir o que
as narinas não cheiram, de ouvir o que os ouvidos não ouvem, então, é ela quem
deve guiar nossas ações, não é?
-
Neste ponto nós nunca discordamos, amado mestre. - Afirmou por fim Aristóteles.
Platão deu a aula por encerrada e ao avistar Aristóteles saindo com os
outros educando, pensou consigo: “Eu também te amo meu discípulo.”
LIÇÕES DO MESTRE
PLATÃO
Platão continuou o discurso racionalista
de Sócrates, indo além ao apresentar a
teoria da reminiscência. Dizia existir dois mundos distintos: o Mundo das
Ideias, onde habita a alma, ligado às coisas racionais, perfeito e imutável; e
o Mundo Sensível, próprio do corpo, ligado aos sentidos, imperfeito e
passageiro. Para cada coisa existente no Mundo Sensível, existe um exemplar
perfeito e eterno no Mundo das ideias, ou seja, as coisas existentes em um não
passa de cópias imperfeitas do outro. Segundo a teoria de Platão, a alma vem ao
corpo e esquece de tudo o que é perfeito e belo que conhecia no mundo das
ideias. Os sentidos ajudam a alma a lembrar das coisas existentes no Mundo das
Ideias em cada momento que vê e sente
suas cópias, pois estas, embora cópias imperfeitas, fazem a alma atingir a
lembrança. Ao lembrar, a alma volta a conhecer pela força da razão, de onde
vem, portanto, o verdadeiro conhecimento. Isto demonstra que Platão não
confiava neste mundo como lugar propício para ser feliz, pois como demonstra em
seu Mito da Caverna, este é o mundo das sombras e dos enganos, principalmente
porque pautamos nossas ações para o contentamento do corpo, das alegrias transitórias e não para o contentamento da
alma, voltadas às alegrias permanentes. Estar na caverna é observar as sombras
projetadas ao fundo e tomá-las por verdadeiras, quando o original, belo e
verdadeiro mundo está fora desta caverna. Platão nos ensina que não devemos
estar presos a sensações que nos aprisionam, que parecem boas, mas nos fazem
mal. Fala-nos da liberdade possível, que é aquela que nos conectam com o
eterno. Se por um lado, afirma não haver felicidade plena neste mundo, já que o
sentimento será sempre cópia dos sentimentos belos e eternos do Mundo das
ideias, que procuremos aproximarmos o máximo possível destes sentimentos.
Platão vislumbra, então, um outro mundo, diferente daquele que nosso corpo
habita, onde não há dor, nem sofrimento. Por isso que existem alguns termos como
"amor platônico", que é o amor impossível, idealizado e não
realizável, a não ser, é claro, numa outra dimensão, para Platão chamado Mundo
das Ideias, para outros, céu. Então,
qual a mensagem de Platão para nossa vida? É mensagem de esperança, de que existe
algo transcendente. Se, por um lado, não
há como viver plenamente nesta dimensão, aponta para o alto dizendo que os
deuses nos farão justiça.
NA PISTA DO Dj PLATÃO
A pista de Platão é
própria para os idealistas. Além de “Vamos Fugir”, de Gilberto Gil, apresentado
no início do capítulo, está na discoteca de Platão a música “Além do
Horizonte”, em que diz haver “um lugar calmo e tranquilo pra gente se amar”, do
Roberto Carlos que também representa com a música “Debaixo dos Caracóis dos
Seus Cabelos”, onde afirma “um dia vou ver você pisando a areia branca, que é
seu paraíso.”
Estar na pista do Dj
Platão é permitir-se viajar, pois as músicas comparam-se, na literatura, ao que
chamamos fuga da realidade, pois vão mostrá-la
dura e sofrida, mas vão também encher a pista de esperança.
A pista vai curtir
muita Legião Urbana, pois Renato Russo, o letrista da banda, foi um afamado
sofredor, sofrimento retratado por suas palavras ditas à mãe antes de morrer:
“mãe, eu não sou daqui”. Várias músicas da banda retratam este sentimento: Em
“Clarisse”, aparece o dualismo corpo/alma ao apresentar a depressão de uma
jovem: “E Clarisse está sentada no banheiro, e faz marcas no seu corpo com seu
pequeno canivete. Seus tornozelos sangram e a dor é menor do que parece, enquanto
ela se corta, ela se esquece, que é impossível ter da vida calma e força”.
Nessa música, a alma da jovem quer livrar-se do corpo, que lhe traz sofrimento
e por isso o agride. Fica mais clara esta ideia nas frases seguintes: “Eu sou
um pássaro, me trancam na gaiola e querem que eu cante como antes”. É a
essência (alma/pássaro) presa à existência (corpo/gaiola). Esta visão está
presente em outras músicas como “Desesseis” em que Jonhy bate em um caminhão
por “culpa de um coração partido”, buscando na morte alívio para a dor. A
música “Perfeição” começa com a frase “Vamos celebrar a estupidez
humana...”, seguindo-se à ela diversas
outras que desabonam a vivência, mas que termina com a profecia: “Venha, o amor
tem sempre a porta aberta e vem chegando a primavera... venha, que o que vem é
perfeição”. A música “Natália”, que significa nascimento, começa com “Vamos
falar de pesticidas e de tragédias radioativas, de doenças incuráveis, vamos
falar de sua vida...”, numa clara desilusão do poeta com o mundo em relação à
musa, sendo o mundo indigno de acolhê-la. No entando, termina a música
afirmando: “E quem sabe um dia eu escrevo uma canção pra você”, dando a clara
sensação de que possa existir um mundo idealizado, onde a musa possa ser
plenamente homenageada. Um pouco antes de falecer, escreveu “O Sagrado
Coração”, em que inicia perguntando: “Falam de um lugar, mas onde é que está?
Onde há virtude e inteligência e as pessoas são sensíveis, e que a luz no
coração é que pode me salvar”; e termina com um pedido: “Por isso lhe peço por
favor, pense em mim, ore por mim, porque eu preciso de ajuda”.
Na pista do Dj Platão
entra quem tem esperança de que um outro mundo é possível.
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