terça-feira, 15 de novembro de 2016

ROSA DE LUXEMBURGO E O BEM VIVER

Viver é Lutar


“Nosso dia vai chegar
teremos nossa vez
não é pedir demais
quero justiça
quero trabalhar em paz
não é muito o que lhe peço
eu quero trabalho honesto...”

Fábrica – Legião Urbana





ROSA DE LUXEMBURGO


“Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”



              Rosa estava reunida com um grupo de militantes da causa operária avaliando os efeitos da greve quando adentrou no recinto um grupo de mulheres elegantes, vestindo roupas finas, diferente do grupo que comumente se reunia naquele espaço. O espanto tomou conta da reunião, não apenas por que as mulheres que acabaram de chegar pertenciam visivelmente à outra classe social, mas também por tão poucas mulheres participarem daquele espaço, em que uma das poucas era justamente Rosa.

              Catarina, a líder do grupo que chegara pediu a palavra:

              - Gostaríamos de conversar com Rosa – falou, demonstrando altivez na postura de quem impunha liderança.

              - Eis-me aqui... – Apresentou-se Rosa – O que desejam?

              - Queremos uma reunião apenas com as mulheres – Falou Catarina olhando ao redor como quem pedisse aos homens que se retirassem, no que foi atendida prontamente, não sem antes terem visto o aceno positivo de Rosa para que assim procedessem.

              - Pois bem, qual o motivo da reunião? – Perguntou Rosa, intrigada, já que aquelas mulheres não pareciam exatamente com as que normalmente se reúnem para lutar por uma causa.

              - Somos do Clube das Mulheres Cristãs e viemos conversar no sentido de encontrarmos uma solução para a greve geral que se estende há semanas. A cidade está um caos, lixo para todos os lados, falta de atendimento nos hospitais e repartições públicas, desabastecimento, enfim, uma série de dificuldades que nós, mães de família, estamos enfrentando. Avaliamos que os homens não estão sendo capazes de dar um fim satisfatório e penso que sensibilidade feminina possa resolver melhor esta questão da greve.

              - Antes da greve, para os mais pobres, estas dificuldades por você apontadas, já eram comuns. Aliás, um dos motivos da greve é justamente esta distância em que há entre estes dois mundos. Vocês, abastados, estão sentido na pele o que vive o pobre todos os dias de sua vida. – Discursou Rosa.

              - E estamos aqui justamente para construir um acordo que beneficie não apenas o término da greve, mas também que assegure vantagens aos trabalhadores em geral e suas famílias. Nossos maridos são os proprietários da maioria das fábricas e podemos influenciá-los apresentando o acordo que nós fizermos. – Propôs Catarina.

              - Entendo... – Falou Rosa – O que propõem?

              - Entendemos que os homens, num dado momento, deixam de lado o diálogo, a vaidade deles fala mais alto e o que seria um possível acordo torna-se intransigência de parte a parte. Já não é questão de luta, mas de vaidade masculina. Ficam de lado a família e a justiça social que tanto se busca... – Explicou Catarina.

              - Tudo bem... Mas devo dizer que fogo se combate com fogo e luta se vence com luta... – Falou Rosa.

              - Como assim? O que queres dizer? – Perguntou Catarina – Nosso propósito aqui é buscar a paz que nossos maridos não conseguem.

              - Há várias formas de se lutar – esclareceu Rosa – Numa comédia escrita por Aristófanes, escritor da Grécia antiga, Lisístrata liderou uma greve de sexo entre as mulheres no intuito de dar fim à guerra do Peloponeso e seus maridos chegassem a um acordo, o que deu resultado. Podemos fazer o mesmo...

              A proposta inicialmente chocou as mulheres, mas aos poucos foram se acostumando com a ideia e passaram a aceitar como algo viável. Depois de um tempo de discussão, Rosa perguntou:

              - Então... Estamos de acordo? – Perguntou Rosa, enquanto observava as mulheres acenarem positivamente – Então, as senhoras se encarregam de conversar com suas amigas e nós, do movimento, nos organizaremos para convencer o maior número possível de mulheres a aderirem nossa causa. O acordo que sair daqui será o nosso vetor e a greve de sexo nosso instrumento de luta.

              - Então vamos começar... – Falou Catarina.

              Rosa pediu a uma de suas colegas de luta chamar Gerda, uma amiga sua que morava nas cercanias. Então começaram as discussões na construção do acordo. Quinze minutos depois do início das discussões já haviam chegado a uma conclusão definitiva. Agora, só faltava convencer os homens, de parte a parte, a aceitarem o que foi estabelecido por elas.

              O tempo de discussão das propostas foi o tempo necessário para que Gerda chegasse. As visitantes espantaram-se ao vê-la:

              - Mas... É uma prostituta – Diziam – Elas eram mulheres recatadas, de fino trato social e senhoras devotas da Igreja, mas que conheciam a afamada dama que acabara de chegar.

              Então, Rosa tratou de esclarecer:

              - Se fizermos greve de sexo, a quem vocês pensam que seus maridos procurarão? Aliás, vocês bem sabem que boa parte deles já o faz assim mesmo. Precisamos do apoio delas se quisermos obter sucesso em nossa luta.

              As visitantes aceitaram os argumentos de Rosa e perceberam que a ajuda de Gerda seria de grande valia, além de começarem a ver com outros olhos a figura que estava à frente.

              Então Rosa explicou a situação à Gerda e a deixou a par da greve de sexo que haviam planejado, obtendo dela a promessa de as “casas de tolerância” fechariam por quinze dias, a princípio, ou o tempo que durasse a greve. Gerta era uma líder entre as prostitutas e poderia conseguir a adesão de suas colegas de profissão.

              - Mesmo que não fosse por uma causa justa, teríamos que aderir à greve por causa dos prejuízos que nos tem causado como cidadãs, além dos prejuízos profissionais, pois sem produção não há dinheiro e, sem dinheiro, nosso rendimento cai muito. – Explicou Gerta.

              Cinco dias depois desta reunião, os homens assinaram o acordo da forma como as mulheres haviam acertado.




LIÇÕES DA MESTRE


              Rosa de Luxemburgo foi uma ativista política de esquerda que, embora tivesse ligação com o marxismo, possuía ideias independentes em relação às lideranças socialistas, como Lênin, por exemplo. Era contra a centralização do poder por parte de uma chamada “administração esclarecida” que conduzisse os ideais socialistas e os trabalhadores, pois como disse: "o ultracentralismo defendido por Lênin aparece-nos como impregnado não mais de um espírito e criador, mas sim do espírito do vigilante noturno". A revolução, portanto, não deve ser algo “fabricada artificialmente” ou “decidida pelo abstrato”, mas como fenômeno histórico baseado numa situação social a partir da necessidade histórica. Em outras palavras, a revolução deve brotar de um sentimento social e não de uma sala de reuniões. Rosa de Luxemburgo ensina que não devemos ficar escravos do pensamento das lideranças que nos cercam e que a luta deve ser primeiro de esclarecimento do sujeito, pois revolução se faz com sujeitos, não com objetos. Defendia a ideia de Marx de que a transformação não deveria partir do meio em que se vive, como queriam os materialistas franceses, nem da consciência das pessoas, como queriam os idealistas alemães, mas da confluência de ambas, em que a consciência de classe transforma o ambiente e o ambiente externo se torna parte de uma nova consciência coletiva que surge a partir da luta. Rosa de Luxemburgo mantinha uma postura crítica à violência revolucionária e defendia a democracia do proletariado nas decisões sobre os rumos a serem tomados, pois defendia, sobretudo, a liberdade em seu mais alto grau, que é a de não apenas decidir, mas participar. Em 1914, seu partido, o Social-Democrata, votou a favor da Alemanha entrar na guerra e Rosa se posicionou contra por ver nesta situação a morte de milhares de trabalhadores em nome da guerra, então escreveu: "A demênica não terá fim, o sangrento pesadelo no inferno não vai parar até que os operários da Alemanha, da França, da Rússia e da Inglaterra despertem de sua embriaguez, se apertem traternalmente as mãos e afoguem o coro brutal dos agitadores belicistas e o grito das hienas capitalistas no poderoso grito do trabalho - 'Proletários de todo mundo, uni-vos!". Neste período, Rosa de Luxemburgo foi presa e, mesmo na prisão, continuou sua luta em nome da liberdade. Em 1918, saiu da prisão e foi lutar junto ao recém fundado Partido Comunista Alemão. Em 1919, foi morta por um grupo paramilitar que agira em nome do governo social-democrata.




Na Pista da DJ Rosa de Luxemburgo


              Além de Fábrica, música exposta no início, outras músicas da Legião Urbana, como “Geração Coca-Cola”, entrariam na coletânea de Rosa de Luxemburgo, pois nesta música está escrito: “...Vamos fazer nosso dever de casa e aí vocês vão ver suas crianças derrubando reis, fazer comédia nos cinemas com as suas leis...”

              Também teria “Rosa de Hiroshima” que casualmente tem Rosa no nome e fala contra a guerra e seus efeitos devastadores, tal como um dia Rosa de Luxemburgo foi contra.

              Músicas de cunho social como “Operário” de Chico Buarque, que seria a atração principal, e “Operário em Construção”, de Vinícius de Morais, seriam constantes na discoteca da DJ Rosa.


              A festa chegaria ao fim com todos cantando: “...Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

domingo, 13 de novembro de 2016

NIETZSCHE E O BEM VIVER


VIVER É SENTIR

"...E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra..."

(A Cura - Lulu Santos)



              Nietzsche expôs para os alunos uma pequena perereca que havia capturado em um banhado próximo da escola. Alguns alunos próximos levaram um susto ao avistarem o animal saltar, provavelmente em busca de um local onde se sentisse mais confortável.

              - Por que salta e se esconde a perereca? – Perguntou Nietzsche.

              - Está assustada com nossa presença, por certo – Respondeu um dos alunos.

              - A perereca, aqui, está em seu ambiente natural? – Voltou a perguntar.

              - Nãaaaaaaaaao! – Responderam em coro.
       
              - Pois bem, jovens, ouçam o que eu tenho a dizer. – Continuou Nietzsche – Nós somos como esta perereca nesta sala, pois vivemos fora do lugar. Desde que Sócrates impôs ao mundo uma forma de viver invertida é que nós nos pusemos presos a regras e conceitos que nos deixam infelizes, amargos, tristes e diminuídos em nosso potencial. O racionalismo e, sobretudo, o cristianismo, com sua ética torta e virtudes controversas, obrigam a todos a viverem contrariamente à nossa natureza...

              - E o que a perereca tem a ver com isso – Perguntou outro aluno, levantando o braço.

              - Bom, nesta alegoria, eu, ao tirá-la do habitat, sou a moral racionalista e cristã que obriga a perereca a viver num ambiente que não é o seu, as pessoas são a perereca, o banhado é a emoção e, a sala de aula, a razão. A perereca vivia bem no banhado, mas eu a tirei de lá e a trouxe para a sala de aula, um ambiente hostil a ela. Comparando, estou demonstrando que a moral racionalista e cristã obrigam as pessoas a viverem num ambiente que não é seu. Bom seria viver segundo a emoção, que é onde estão as nossas verdadeiras virtudes.

              - Por que dizes que é na emoção que estão as verdadeiras virtudes – Perguntou um terceiro aluno.

              - Por que a emoção não nos obriga a fazer o que não queremos, nem nos culpa quando fazemos algo que queremos. A razão nos impõe culpa quando isto acontece, seja por fazer algo ou deixar de fazer, porque possui regras que limitam nosso potencial humano e nos impõe obrigações...


              Percebendo que os alunos estavam ainda confusos, Nietzsche resolveu contar-lhes uma história.

              - Vou dar-lhes um exemplo: Um homem ia se despedir de um amigo numa outra cidade, porque este partiria para uma terra distante. Acontece que encontra outro homem, conhecido seu, já morto à beira do caminho. A consciência social, ou a norma vigente é a de que o morto deva ser enterrado no túmulo da família que se encontrava em sua cidade e cabia a quem o encontrasse levá-lo até lá. Nosso caminhante se viu num dilema: Cumprir com sua missão junto à sociedade, voltando o percurso e atrasando a viagem, agindo assim conforme manda as normas sociais arriscando nunca mais ver o seu amigo; ou ignorar o homem morto e seguir caminho. Sua consciência fez com que levasse o homem morto nas costas até a família. Isto de fato atrasou a viagem e tirou dele a possibilidade de se despedir do amigo e não mais o veria. O que vocês pensam, agiu com correção o homem?

              Os alunos assentiram afirmativamente meneando a cabeça. Não houve entre eles exceção alguma, então Nietzsche voltou a falar:

              - Nesta história, devo adverti-los, não está registrado o sentimento do homem. A perda da oportunidade de se despedir do amigo causou nele ódio, repulsa, tristeza, amargura... Cumpriu com os valores postos em sua consciência, mas e quanto à sua felicidade? Alguns podem dizer que a felicidade está no fato de ter cumprido sua missão junto ao morto e sua família, mas é uma felicidade falsa, pois não foi uma decisão livre, mas obrigada pela consciência.

              Ao terminar de falar, tocou o sinal de fim de aula. Então liberou os alunos e foi catar a perereca num canto da sala a fim de devolvê-la ao seu habitat. Pensava consigo: “Desculpe amiguinha o medo que lhe impus. Mas não se vitimize tanto, a humanidade vive isso desde que criou normas e regras racionalistas. Não se preocupe, vou devolvê-la ao banhado”.
          
              Foi quando olhou para a porta e viu que seu amigo, Pe. Schuler, entrara na sala carregando sua grande batina preta. Aproximaram-se e o abraço fez Nietzsche ficar escondido dentro da batina e do abraço.

              - Veio se confessar? – Perguntou Nietzsche provocando o amigo.

              - Na verdade sim. Uma paroquiana vem me assediando há tempos e estou propenso a ceder à tentação. Não sei mais o que fazer, pois tenho que cumprir os votos que fiz a Deus.

              - Eu resolveria isto fácil, bem sabes, pois não acredito em Deus. No entanto, tu acreditas e devo respeitar isso. Devo dizer-te algo: teu voto não foi para Deus, foi para a igreja e os homens. Afinal, teu Deus proíbe o sexo? – Perguntou Nietzsche.

              - Lógico que não. – Respondeu o padre

              - Então, se o teu voto de abstinência de sexo foi para Deus e ele não o proíbe, por que proíbes a ti mesmo o que Deus não proíbe, dizendo que o fazes em nome Dele? Não faz sentido algum. O voto é um peso que Deus, caso exista, certamente não quer que carregues, pois um Deus verdadeiro haveria de querer-te feliz e não frustrado. Provavelmente, este Deus não exigiria louvores e obediência, do contrário seria um Deus mau. Já te disse em outras oportunidades: Desconfio de um Deus que não dança. – Concluiu Nietzsche.

              - A velha história do homem que carrega outro já morto nas costas... – Analisou o padre – Ainda a contas aos alunos?

              - Sim. Acabei de contar a eles. – Confessou o professor.

              - vejo que está com a perereca também...

              - Estava agora indo ao banhado devolvê-la ao seu lugar. Lá ela é feliz.

              - Quer saber – respondeu o padre – penso que tens razão...

              - Não – corrigiu Nietzsche brincando – Eu tenho emoção...

              Então, o padre, num gesto teatral e para espanto do incrédulo Nietzsche, tirou a batina e saiu porta afora nu e gritando: “Eu sou livre! Eu sou livre!”




LIÇÃO DO MESTRE


A grande contribuição de Nietzsche foi mostrar as incompatibilidades da moral vigente em sua época e desnudar a hipocrisia. Foi crítico do racionalismo e do cristianismo, por observar em suas normas verdadeiras prisões, pois não via valor nas virtudes idealizadas por estas vertentes, porque elas impediam as pessoas de serem felizes, uma vez que impunham culpa, desespero, mágoa, obrigação... Defendia a volta dos valores dionisíacos, representado pelo deus Dionísio e seus valores vividos na antiga Grécia. Em outras palavras, viver conforme querem os racionalistas e cristãos é podar todo o potencial humano; o controle da emoção, neste caso, é maléfico à felicidade humana. Assim, perde-se a liberdade em nome de uma consciência coletiva, apequena-se em nome de uma bondade falsa e hipócrita. Deixa-se de fazer o que se quer por medo do castigo de um Deus que exige louvores e sacrifícios. A questão não é se existe Deus, como afirmou ao dizer: “Deus está morto”, mas o fato de que este Deus castiga, humilha e cobra louvores. Ao dizer: “Desconfio de um Deus que não dança”, Nietzsche expõe a sua contrariedade. Isto pode nos levar a pensar: Por que Deus iria querer que vivêssemos pesadamente em virtude do outro, compromissado em seguir normas que não se adequam ao bem viver humano? Talvez a resposta esteja na chamada vida eterna, onde o sofrimento aqui geraria recompensa posterior. Neste caso, por que apenas a partir do racionalismo e da vinda de Jesus passou-se a valer tal disposição? Por que depois de milhares de anos é que Deus procuraria o homem para uma aliança, já que antes as civilizações eram politeístas e viviam sem este Deus? A resposta, talvez, seria uma intervenção de Deus na humanidade por conta dos desvios desta, segundo afirmam a Bíblia e os cristãos. Então, porque a intervenção de Deus não resolveu os problemas com estes desvios, já que hoje ainda impera a maldade ou, pelo menos, não menos do que havia antes? Por isso Nietzsche propõe que voltemos a viver livremente, segundo nossas emoções, pois viver segundo a razão é contrariar-se a si mesmo.




Na pista do Dj Nietzsche


Nietzsche valoriza a emoção e nos convida a destruir o ideário racionalista, então, propõe celebrar a vida através da emoção.

Começaria mostrando as garras com a música “Sereníssima” que diz: “sou um animal sentimental me apego facilmente ao que desperta o meu desejo, tente me obrigar a fazer o que não quero e você vai ver o que acontece...”

Depois haveria a celebração da vida com muita dança. A vez seria dos Menudos cantando “não se reprima, não se reprima...” e do grupo Dominó cantando “Companheiro, companheiro vem, vem no balanço do mar, vem depressa vem, é tão gostoso dançar...”

Madonna seria a atração internacional cantando músicas como “Like a Virgen” e “American Pie” que diz: “Você escreveu o livro do amor? E você tem fé em Deus se a Bíblia mandar? Agora, você acredita em Rock’n’Roll? A música consegue salvar sua alma? E você pode me ensinar a dançar bem devagar?” e finaliza dizendo: “Os bons e velhos rapazes estavam bebendo uísque e rye cantando ‘é neste dia que eu morrerei... Começamos a cantar.”  

sábado, 5 de novembro de 2016

EPICTETO E O BEM VIVER

VIVER É ACEITAR



“Eu ando pelo mundo divertindo gente
chorando ao telefone
E vendo doer a fome dos meninos que tem fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(Quem é ela? Quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle.”

Adriana Calcanhoto – Esquadros



EPICTETO

"Não pretendas que as coisas ocorram como tu queres. Deseja mais o bem. Que se produzam tal como se produzem, e serás feliz."




              Epicteto estava a olhar uma figueira, quando chegou até ele um escravo que pertencia a um rico mercador reconhecido pela descortesia com a qual tratava a todos. Como Epicteto ganhara fama por sua sabedoria e bons conselhos, o escravo o procurara. A dúvida do escravo era se devia ou não fugir.

              - Mestre, sei que no passado fostes um escravo. Sofro constantes agressões de meus amos e estou disposto a fugir. Quero a liberdade. O que devo fazer? – Perguntou o escravo.

              - Na vida, meu caro Lucílio, existem dois grupos de coisas: as que podemos modificar e as que não podemos. Devemos nos dedicar àquelas que podemos modificar e aceitar aquelas das quais não temos ingerência. – Ensinou Epicteto.

              - O que queres dizer? – Perguntou o escravo, confuso.

              - Observe aquele figo quase maduro – falou Epicteto apontando para a figueira – há dias observo seu desenvolvimento. Se eu o tivesse comido ainda verde, não seria tão proveitoso. É preciso tempo adequado. Este é um exemplo de algo que não podemos modificar, pois devemos esperar o tempo da natureza. 

              - Entendo o que dizes, mas qual a analogia com o meu problema? Voltou a perguntar o escravo.

              - Como bem dissestes, já fui escravo. Também sofria agressões e cheguei a ter a perna quebrada por maldade de meu senhor. Porém, percebi o lado bom de ser escravo que é o de não ter responsabilidades além daquelas que o trabalho me impõe e isso me oportunizou estudar nos momentos de ócio. Com o tempo tornei-me contador de meu senhor e passei a fazer serviço leve. A maior parte de meus estudos se deu no tempo em que estive com a perna quebrada. Aproveite o melhor de cada situação e use os meios que te são possíveis para transformar a tua vida.

              - Então, só me cabe aceitar a condição de escravo? – Refletiu.

              - Pense bem, não podes modificar por conta própria o fato de seres escravo... É uma condição infeliz, eu sei, mas podes tirar proveito disto. Estude, modifique aquilo que está a seu alcance e aceite aquilo que não podes modificar. Não é sábio nadar contra a correnteza, sábio é usá-la a seu favor. Se fugires, passarás toda a vida se escondendo como um fugitivo com a cabeça a prêmio. Esta é a melhor hipótese, em caso de não ser recapturado. Caso aconteça o infortúnio de te pegarem, o que seria o pior cenário, encontraria um amo sedento por vingança. Nem tudo o que desejamos é necessariamente o melhor para nós, lembre-se disto...

              - Entendi, mestre, vou seguir seu conselho e tirar o melhor proveito possível desta minha triste condição.

              - Observe aquele bezerro ali embaixo no rio – falou Epicteto apontando para o rio que corria logo abaixo de onde estavam – está tentando vir para a margem nadando contra a correnteza. Coitado, falta-lhe inteligência. Se deixasse o fluxo do rio levá-lo chegaria até aquelas pedras mais abaixo e sairia tranqüilo. Vamos ajudá-lo.

              Foram até o rio e auxiliaram o bezerro a sair em segurança. Então, Epicteto olhou para Lucílio e disse:

              - O destino está sempre presente, desde o nascimento até a morte, algumas vezes determinado, outras, em construção...




LIÇÕES DO MESTRE


              Epicteto viveu no primeiro século após o nascimento de Cristo e pertencia a escola filosófica Estoicista, que pregava aceitação diante das adversidades maiores para uma vida mais feliz. O estóico Epicteto foi um escravo e um filósofo bastante interessante e renomado em sua época, chegando a ser influência e mestre do grande político romano Marco Aurélio. Epicteto costumava dizer que normalmente nosso erro estava na interpretação e no julgamento que fazíamos dos fatos e não nos fatos em si. A maior parte dos erros está em nós, pois ao julgar errado um fato, não o conhecemos direito. Julgar errado é o mesmo que ignorar, pois não se conhece verdadeiramente algo através de um julgamento errado. O principal ensinamento de Epicteto, no entanto, reside em duas premissas: a de que devemos modificar a coisas que estão ao nosso alcance, como é o caso, por exemplo, de nossas vontades; e aceitar aquelas das quais não nos é permitido modificar, como por exemplo, o corpo que temos. Hoje, as pessoas abarrotam as academias procurando um corpo perfeito, ou fazem dietas prejudiciais à saúde ou, ainda, procuram clínicas de estética, por vezes morrendo numa mesa de cirurgia, tudo por conta de um descontentamento com o corpo que lhe foi dado pela natureza. Outras procuram incessantemente por riqueza, esquecendo-se de que a felicidade da conquista, quando raramente acontece, é ao custo de uma infeliz busca. Neste caso, a interpretação que fizemos da riqueza suplantou sua realidade. Epicteto é atualíssimo diante do descontentamento geral das pessoas e um convite a refletir sobre nossos desejos, pois segundo ele, desejo e felicidade não podem andar juntos.




Na Pista do DJ EPICTETO


              Além da música “Esquados”, com trecho apresentado no início, entraria na discoteca do DJ Epicteto, a música “Marvin” dos Titãs, que diz: “Meu pai disse boa sorte com a mão em meu ombro em seu leito de morte. E disse: Marvin, agora é só você e não vai adiantar, chorar só vai me fazer sofrer...” .  
                     A música conta a história de um jovem que se vê diante da morte do pai, sem nada poder fazer. O pai pede aceitação. Narra ainda as dificuldades pelas quais passaria o jovem em sua vida, uma repetição da vida sofrida do pai, numa alusão ao que disse o pai no leito de morte: “O seu destino eu sei de cor”.

              A própria música “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto, já referida aqui, é uma reflexão do eu-lírico sobre a pouca possibilidade de inferir nos acontecimentos ao afirmar: quando acordei não vi ninguém ao lado”, pois como afirma Epicteto, não podemos agir sobre a vontade de quem quis ir embora ou de quem morreu, simplesmente acordamos um dia e nos damos conta de que, a despeito de nossa vontade, a pessoa não está mais presente. 
                 A música foi escrita em homenagem ao irmão cego e, ao dizer, “remoto controle”, está afirmando que não temos controle sobre as circunstâncias e, por conseqüência, temos a possibilidade reduzida de agir sobre nossa vida desde o momento em que nascemos.

              Começaria a roda de samba com “Não Deixe o Samba Morrer” que conta a história de alguém que não pode mais fazer algo do jeito que costumava e o corpo permitia, então se contenta com outra forma de viver a experiência: “Quando eu não puder pisar mais na avenida e quando minhas pernas não puderem aguentar, levar meu corpo junto com meu samba, meu anel de bamba eu deixo a quem mereça usar”. E depois estoicamente conclui: “Eu vou ficar no meio do povo espiando, minha escola perdendo ou ganhando, mais um carnaval”.


              A roda de samba poderia continuar com Zeca Pagodinho e sua música “Deixa a Vida Me Levar”.