domingo, 17 de novembro de 2024

RENATO RUSSO E A HOMOSSEXUALIDADE

 A questão da homossexualidade foi a bandeira mais eloquente daquelas defendidas por Renato Russo. Quem acompanha a trajetória artística pode perceber, no entanto, que não foi um caminho tão tranquilo, como de alguém que se encontra totalmente seguro de si para uma abordagem contundente sobre esta questão desde o princípio. Surgiu aos poucos, em metáforas e insinuações, até o ponto em que veio com a confissão pública de sua condição. Vendo ou lendo as entrevistas, para além das canções, pode-se perceber não somente uma preocupação com a receptividade do público, parecia haver nele uma certa culpa em aceitar tal condição, pois falava em ser de uma família tradicional italiana, católica e outros fatores culturais que dificultavam falar diretamente sobre o assunto. Não se podia ter total clareza de que estávamos diante de Manfredini ou de Russo, ou uma simbiose dos dois, que é como eu sempre interpretei.

Teve namoradas, o que poderia demonstrar uma possível tendência bissexual, mas sempre disse preferir os meninos às meninas... É possível que os relacionamentos com mulheres na juventude tenha sido apenas uma tentativa de fugir do que realmente sentia, por conta da pressão cultural do meio em que vivia. Seu relacionamento com as mulheres, como veremos num tópico posterior, era de admiração ao espírito feminino, não de desejo carnal. Basta ver a força de suas personagens femininas e a forma como abordava o tema nas canções.

Segundo o próprio Renato, a primeira vez que inseriu o tema foi na canção "Soldados" com o verso "se lembra quando era só  brincadeira fingir de ser soldado a tarde inteira". Uma forma tímida de entrar no assunto, pois a frase poderia ser interpretada como uma forma jocosa de criticar a perda de tempo e anos roubados da juventude em um front de guerra. Depois que ele revelou ser uma referência é que se percebe que faz sentido. Um homossexual, ao ouvi-la, provavelmente faria esta interpretação de forma mais rápida.

Já no segundo disco, com "Daniel na Cova do Leões", o recado começa a ficar mais claro com frases como "teu corpo é meu espelho e em ti navego" e "desafio o instinto dissonante", onde o instinto Adão e Eva (dissonante/diferente) era desafiado por ele que naturalmente se sentia atraído por um igual (espelho). Contudo, as frases citadas acima não trouxeram de cara a percepção de que se tratava de uma música com temática gay para a maioria das pessoas. Isto veio com a declaração de Renato em entrevista, de que os primeiros versos seriam, inclusive, uma alusão ao sexo oral. Vejamos:

"Aquele gosto amargo de teu corpo

Ficou na minha boca por mais tempo

De amargo então, salgado, ficou doce

Assim que teu cheiro forte e lento 

Fez casa nos meus braços..."


Uma primeira consideração a fazer tem relação com o que disse Renato na entrevista sobre o início da canção ser uma referência ao sexo oral. Por si só não a transforma numa música com temática gay uma vez que heterossexuais também praticam o sexo oral. Renato não está retratando simplesmente do ato em si, mas  revelando o surgimento de um sentimento em praticá-lo dentro de circunstâncias que o desaprovavam, como as apresentadas anteriormente, dos aspectos culturais, familiares e pessoais trazidos com o ato e suas repercussões, às vezes com ódio e visto como depravação. Não é o que se pratica, mas com quem... Não que Renato não tivesse clareza de que o que sentia era puro e natural, mas é claro que algo o incomodava, tal como revelou em maio de 1989, para o Jornal do Brasil: "Eu era muito inseguro. Porque eu sempre soube que eu era gay, sempre. O mundo me dizia que eu era doente, pervertido. Eu queria ser completamente diferente e, ao mesmo tempo, aceito pelas pessoas ". Renato revelou na entrevista anterior (sobre o sexo oral) o que queria deixar claro, que a canção tinha relação  com a homossexualidade, mas não se desnudou por completo. Os dois primeiros versos trazem realmente a descrição de um sexo oral que "desta vez" o gosto amargo ficou por mais tempo. Cabe perguntar: por que desta vez o gosto amargo ficou por mais tempo? Expressão de um sentimento ou apenas uma descrição objetiva? Para efeito de raciocínio e evitar possível engano interpretativo, vou considerar que seja apenas a descrição de um ato, sem simbologia de sentimentos contidos nestes dois primeiros versos. Acontece que o terceiro verso "de amargo então, salgado, ficou doce" é inequívoco que trata-se de um sentimento, e que remete ao amargo do verso anterior. Então, dá para verificar que à época em que escreveu Daniel na Cova dos Leões, havia ainda um certo conflito entre o que sentia e a culpa sentida  pelos aspectos psico-sociais que o tema trazia. É bom lembrar que nesta época estava em voga uma teoria de que a homossexulidade tratava-se de uma doença, sendo uma "anomalia" biológica. A versão anterior era de que seria coisa do demônio... Imagine os conflitos internos gerados, dentro do contexto, por mais que Renato fosse seguro do que sentia e por mais que soubesse ser natural, porque assim é que sentia.

O restante da música vai corroborar com os versos iniciais desta busca de equilíbrio entre o que o eu-lírico sente e o julgamento que faz deste sentir. Fala em correnteza, incerteza, confusão... Esta confusão, contudo, não é sobre o que sente, pois o que é já sabe muito bem. É sobre fazer isto se tornar possível sem que seja "errado". É bom lembrar aqui o verso "faço o nosso meu segredo mais sincero"... Demonstra insegurança. Ele precisa transformar o amargo em doce de forma completa, que permita ser às claras e que vá além de quando está nos braços de quem ama.

Outra consideração a ser feita é sobre o título da canção estar vinculado à uma passagem bíblica. Um dos maiores entraves sociais de considerar a homossexualidade como algo natural e normal é a religião católica, da qual se filiava a família Manfredini. Renato, então, faz um confronto entre o relato bíblico acerca do profeta Daniel e a situação vivida pelo eu-lírico da canção, descrito na primeira pessoal, diga-se de passagem. Daniel era um dos Sátrapas do Rei Dario e invejado pelos outros por conta da preferência demonstrada pelo rei. Como era hebreu e não adorava nada mais além de Deus, os seus desafetos usaram esse fato para colocá-lo contra Dario. Induziram o rei a proclamar um edito de que deveria ser adorado e quem não o fizesse seria condenado a ser jogado na cova dos leões famintos. Como previsto, por fidelidade a Deus, Daniel se recusou a prestar adoração e, Dario, mesmo percebendo a armadilha que fora criada contra seu preferido, não teve outra alternativa que impor o castigo descrito em seu decreto. Daniel foi então jogado na Cova dos Leões onde ficou por alguns dias, sobrevivendo a eles. Dario, então, mandou que o retirasse e lhe concedeu o perdão real, vendo que a fé de Daniel era poderosa. 

Colocar um elento bíblico neste tema é uma forma de exorcizar demônios... E uma certa provocação. Daniel é perseguido por aquilo que é, tal e qual os homossexuais o foram através de séculos. Renato, com essa estratégia, usa um elemento da crença de quem mais perseguiu, para estabelecer um elemento comparativo. E por falar em fé, aí se estabelece a segunda consideração sobre a presença da passagem bíblica estar nesta canção. Assim como a fé em Deus salvou Daniel dos leões na cova, a fidelidade ao que o eu-lírico sente e ao que ele é torna-se aquilo que o pode salvar, conforme aponta o final da canção. 

"Mas tão certo quanto o erro 

De ser barco a motor 

E insistir em usar os remos

É o mal que a água faz quando se afoga

E o salva-vidas não está lá 

Porque não o vemos."

A fé é o elemento salvador e por ser invisível aos olhos não é acessada. Não se pode ser o que não é,  fazer o que não quer, ainda que cada individuo seja parte de um todo. Um todo não pode proibir ao indivíduo uma conduta, se esta não lhe atinge. Não existe um edito sagrado de um Deus proibindo um filho seu  de seguir a própria natureza. Mas existe um salva-vidas próximo, a fé, para confrontar o medo trazido pelos leões sociais.

Kieerkgaard, filósofo, afirmou que o ser humano possui três estágios: o estético, o ético e o espiritual (de fé). Há aqueles que vivem segundo as aparências e se importam apenas com as questões mais rasas. Estes não passam do estágio estético. Os que se aprofundam um tanto a mais e se importam com questões que vão além das aparências, vivem o estágio ético. Mas há ainda um estágio superior. O sujeito completo é o sujeito de fé, o espiritualizado que nada teme por viver a liberdade da autodeterminação e a segurança de saber quem é. Sabe por onde, e quais elementos possui para navegar. O sujeito é sua própria bússula. É esse sujeito, o da fé, que o eu-lírico da canção busca para salvar-se, o problema é que insiste em usar os remos quando é um barco a motor. Procura o salva-vidas ao redor, sem perceber que a salvação está dentro de si.

Outra música com esta temática, ainda ambientada em um período anterior ao assumir publicamente sua homossexualidade foi "Se Fiquei Esperando meu Amor Passar". E vem apresentando as mesmas características: simbologias, metáforas, sentimentos dúbios e, novamente, a religiosidade cristã... Inicia a canção dizendo não querer se machucar de novo por culpa da amor, por não querer viver em erro. O sentimento de culpa era visível no eu-lírico, embora soubesse claramente quem era e o que sentia. Vivia em erro caso se entregasse ao amor sentido e vivia em erro caso não se entregasse por conta da carga de repúdio recebida pelo seu entorno social. Não vê  saída.  Daniel na Cova dos Leões continuava em Se Fiquei Esperando meu Amor Passar... E alguns anos depois, embora agora já conseguisse rimar "romã com travesseiro" e a correnteza já tivesse alguma direção, os elementos ainda estavam ali. Agora já havia a sensação de que "podiam namorar", mas ainda haviam enfrentamentos a serem travados, tal como aparece nos versos seguintes:

" Se fiquei esperando meu amor passar

Já me basta que estava, então, longe de sereno

E fiquei tanto tempo duvidando de mim

Por fazer amor, por fazer sentido

Começo a ficar livre, acho que sim

De olhos fechados não me vejo 

E você sorriu pra mim..."


Se em Daniel o eu-lírico sentiu o gosto amargo adocicar nos braços amados, aqui é o sorriso quem o conduz para a liberdade e o acolhe. Porém, novamente aparece um valor preponderante na cabeça do eu-lírico, o mesmo fator que lhe punha trava, mesmo sabendo que não havia erro algum, por todo este tempo, entre uma canção e outra. E então cai de novo na religiosidade ao encerrar a canção com um mantra católico: "cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo tende piedade de nós".

Segundo os evangelhos foi João Batista quem pronunciou Jesus como cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Renato então, ao encerrar com esse mantra confessa ainda ter alguma dificuldade em lidar com a situação e, ao mesmo tempo, se dá conta de que não deve prestar conta a mais ninguém além daquele que teria condições de perdoar, se culpa houvesse, ao mesmo tempo em que passa o recado a quem se acha no direito de julgar.  Duas músicas com a mesma temática, dois homens de fé tirados da Bíblia como simbologias da força existente em cada ser humano e meio de salvação. E aqui está presente outra sacada de Renato: Ele podia escolher Abraão, José, Jó, e outros mais visíveis entre os homens de fé do contexto bíblico, mas escolheu Daniel e o João Batista. O motivo da escolha está no fato de que esses não eram bem aceitos no meio em que viviam, ao contrários dos outros personagens, que eram símbolos de virtude. Ambos incomodavam o status quo da sociedade, Daniel, aos sátrapas, João, aos poderosos governantes e aos líderes religiosos.

Faz-se necessário esclarecer, quando se fala aqui em salvação, não é uma referência ao que se é (a homossexualidade), mas sobre como lidar com a situação em que, mesmo inocente, se vê jogado aos leões. Cabe esclarecer também que quando se fala em culpa, também não é em relação ao fato do eu-lírico ser homossexual, a culpa vem refletida sobre um sentimento de deslocamento do meio em que vive.

Para complementar, é  preciso identificar que durante a trajetória artística,  Renato Russo lidou com o tema de duas formas diferentes. A primeira forma foi esta apresentada até aqui, de modo velado, cuidadoso, com elementos religiosos e destacando a luta contra o preconceito. A segunda fase, pode-se dizer assim, veio junto com a declaração pública de sua homossexualidade. A partir de então o assunto é abordado de forma mais leve, em canções como "O Mundo Anda Tão Complicado" e "Vamos Fazer um Filme", pois agora, "pode namorar" mesmo. Ainda pedia respeito, mas agora parece ter alcançado o ser de fé que Kieerkgaard propunha. O leões não mais assustavam e as agruras do eu-lírico agora se limitavam aos problemas trazidos pelo próprio relacionamento e como Renato lidava com eles. A reflexão não é mais voltada, nesta segunda fase, que vem com "O Descobrimento do Brasil", ao que o outro pode fazer sobre o que sinto, mas o que eu posso fazer sobre o que sinto... É uma guinada e tanto na forma de tratar o assunto. Não que tivesse mudado muito a forma como a sociedade lidava com a questão. O preconceito continuava, assim como as mortes, as agressões e todo tipo de opressão. Mas Renato agora estava preparado para abordar o tema sobre um outro viés, com as bênçãos do cordeiro de Deus.

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