Já vimos na postagem anterior (Russell e Russo) que Renato Russo atuava politicamente em cima de causas. Do ponto de vista ideológico manifestava aversão ao Fascismo e a ditaduras, falando sobretudo da ditadura militar no Brasil. Na transição política do início dos anos 1980, houve a anistia, um combinado entre oposição e governo militar, onde os exilados políticos podiam voltar ao país e os militares não responderiam por suas ações praticadas durante o governo. Renato Russo se colocava contra esta anistia, pensava que os crimes e torturas não deveriam ser esquecidos. O Brasil nunca fez uma revisão séria quanto a isto e o futuro mostrou que Renato tinha razão. Em 08 de janeiro de 2023, após Jair Bolsonaro não conseguir se reeleger, seus apoiadores mais ferrenhos, inconformados com a derrota, invadiram a praça dos três poderes vandalizando o que encontravam pela frente, sob o argumento de que as eleições haviam sido fraldadas. Não sem antes por dois meses seguidos agruparem-se em frente aos quartéis pedindo intervenção militar. No decorrer destes meses, entre a eleição e a posse do eleito Lula, muitos eventos ocorreram, tal como a colocação de bombas em um caminhão deixado no aeroporto de Brasília, estradas trancadas e depredações. Pediam intervenção militar para impedir a posse de Lula. A anistia de 40 anos atrás davam uma certa autorização a certos saudosistas do governo militar de proclamar novamente o desejo de ter o país sob comando de uma ditadura. Em 13 de novembro de 2024 um homem jogou bombas contra o prédio do STF e depois se atirou sobre uma delas, explodindo a si mesmo. A sanha golpista continuava no discurso dos derrotados na eleição e arregimentavam pessoas para tais ações. Sobre a anistia, que, como vimos, teve repercussão futura, Renato Russo escreveu em "La Maison Dieu"
"...Eu sou a Pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
General que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente de todos os desaparecidos
O choque elétrico e os gritos
Parem por favor, isso dói...
...Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de merda
Não, nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém"
Os anos de chumbo eram assunto recorrente de Renato Russo. "1965 (Duas Tribos)" é uma referência ao AI-5, o decreto mais duro do período. O Brasil estava definitivamente nas mãos dos ditadores fardados que usavam o argumento de estar salvando o país do comunismo. Remete a um tempo em que Renato era ainda criança e como a propaganda oficial funcionava em favor dos comandantes, pois qualquer crítica era passível de torturas. O ufanismo pátrio não permitia que algo fosse dito contra o governo, pois seria o mesmo que se colocar contra a pátria, o que era passível de tortura, prisão e, aos mais influentes, exílio. Duas Tribos representa este momento:
"...Cortaram meus braços
Cortaram minhas mãos
Cortaram minhas pernas
Num dia de verão..."
Nos versos acima podemos observar uma alusão às torturas aos que se levantavam contra o regime. O que legitimava tais castigos era o discurso representado nos versos abaixo:
"Quando querem transformar
Dignidade em doença
Quando querem transformar
Inteligência em traição
Quando querem transformar
Estupidez em recompensa
Quando querem transformar
E esperar sem maldição"
Como podemos ver a inversão sobre o que é virtude e o que é vício, bem típico da ideologia fascista, estava presente. Já os versos abaixo mostram como este discurso era usado. Os que se deixavam levar por ele não se importavam com o que acontecia aos que não se conformavam com a situação. Tal como crianças ficam alheias enquanto brincam, os conformados repetiam o Junior (Renato Manfredini) criança que, com 4 anos, era realmente inocente e aprendera estar diante do maior presidente do mundo.
"Mataram um menino
Tinha arma de verdade
Tinha arma nenhuma
Tinha arma de brinquedo
Tenho Autorama
Tenho Hanna-Barbera
Tenho pera, uva e maçã
Tenho Guanabara
E modelos Revell"
Enquanto uns morrem por conta do regime por não serem bons filhos da pátria mãe gentil, outros são beneficiados por ela e ensinados a admirarem como a melhor das mães. Renato afirmou em entrevista como as crianças eram estimuladas a fazer redações sobre as virtudes do presidente... Por fim, a música termina com a frase ufanista da época:
"O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país
Em toda e qualquer situação
Eu quero tudo pra cima
Pra cima
Pra cima"
FASCISMO
O fascismo foi a posição ideológica mais combatida por Renato Russo. Sempre que tinha oportunidade marcava sua posição. Nas músicas os atos fascistas normalmente não aparecem acompanhados do nome, mas eram facilmente identificados nas referências feitas às chacinas, no desrespeito às mulheres, na exploração...
Por causa da frase "disciplina é liberdade" em Há Tempos, Renato foi acusado de fascista, imagine... o verso lido isoladamente pode dar sentido tal acusação, mas dentro do contexto da música não se sustenta, passa a ser, como diz a gíria, forçar a barra. O próprio Renato explicou que não se trata de um ser humano ou grupo impor limite a outro, isso sim seria um fascismo, mas sobre autodisciplina, do auto-controle para alcançar a autonomia e ser verdadeiramente livre. Os indisciplinados são escravos de suas indisciplinas, pois não conseguem se auto-determinar e se autogerir. O compositor disse que se inspirou em Orson Wells, escritor do livro 1984.
Esta ideia de que a disciplina não é exatamente o que tolhe a liberdade já vem dos tempos dos gregos clássicos... Aristóteles diz que o equilíbrio é o melhor caminho pois a sabedoria está no meio. Não se pode agir com extremismos, como é o caso do Fascismo. Para uma comida ficar boa não pode ser insonsa nem demasiadamente temperada, os temperos devem ser equilibradamente postos para harmonizar os sabores. Para Aristóteles, existe a virtude, que está no meio, e dois vícios, suas extremidades. Como exemplo, citamos a coragem, que é uma virtude que aparece na canção. Seus vícios são a covardia (por falta) e a temeridade (por excesso). Toda virtude tem um vício por falta e outro por excesso. Autocontrole, para um temeroso, o faz chegar à coragem, que a virtude correspondente. Ser temeroso, o faz ir para um caminho não virtuoso, por estar escravo de seus impulsos. Assim, controlar estes impulsos e chegar ao ponto virtuoso, ao equilíbrio, que é a coragem, se faz através da disciplina. Então, disciplina como liberdade, tal como aparece na música Há Tempos está colocada neste contexto.
Epicuro, outro filósofo da antiga Grécia, tem esta mesma linha de pensamento. Ele sustentava que toda ação deveria procurar o prazer. Este sentimento, no entanto, tinha em Epicuro um sentido diverso do "vida louca" que possui hoje. Está ligado ao auto-controle como obtenção de um prazer prolongado, em estar mais contente com o que se tem do que com o que e poderia ter, uma vez que isto poderia trazer mais dissabores que alegrias. Fugir do sofrimento é a melhor forma de sentir prazer e esta fuga significaria fugir dos excessos. Se você ganha uma barra enorme de chocolate é melhor comer um pedaço por dia, por um tempo estendendo o prazer, ou se impanturrar de uma só vez? Para Epicuro a primeira opção, pois além de alongar o prazer você pode estar evitando uma tremenda dor de barriga. Para este processo acontecer precisaria usar a autodisciplina. Ou seja, a disciplina liberta quando se dá por opção.
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