O Estoicismo é uma escola filosófica que prega a serenidade nas situações para estabelecer harmonia a fim de chegar a uma situação de bem estar. A aceitação do que não se pode mudar ou que não se tem o poder de intervir é um dos processos para se chegar a este equilíbrio. Num relacionamento amoroso, você não tem poder sobre o sentimento e a vontade do outro, num dia ele está ao seu lado e no outro pode não mais estar. Tampouco pode infruir no que pode acontecer. A morte, por exemplo, é um fator da qual não se tem o controle. Por isso é preciso ter serenidade para passar pelo processo da aceitação. Isto é perfeitamente descrito, por exemplo, na música Esquadros, de Adriana Calcanhoto com quem, inclusive, Renato gravou dueto em programa de TV:
"Meu amor cadê você
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado..."
Nesta música Adriana usa o termo remoto controle, uma alusão ao controle remoto, um aparelho que permite controlar de longe. Esta inversão para remoto controle inverte também a possibilidade de controle do sujeito, uma vez que a vida está ligada a fatores que fogem de nossa alçada. Esquadros é uma música síntese do pensamento estoico. Adriana fez para seu irmão cego, refletindo sobre a impossibilidade de agir sobre isso. A partir desta reflexão, vem ao pensamento uma série de outras situações das quais não tem o poder de agir ou modificar, sendo, portanto, remoto o controle sobre elas. Uma dessas situações é sobre a vontade do outro nas questões do amor, pois um dia a pessoa pode amanhecer contigo e nos outros seguintes não mais... E a melhor forma de agir sobre isso é aceitar.
Inúmeras outras canções vêm carregadas deste conceito, nos diversos aspectos da vida, principalmente através de compositores como Oswaldo Montenegro e Renato Teixeira. Tal conceito está presente em diversos ritmos, como o expressado pelo eu-lírico de "Não Deixe o Samba Morrer". O sujeito já não consegue mais fazer o que fazia antes e agora tem que se contentar em buscar novas formas de participar do processo. Neste caso ele não pode mais sambar, então deixa a sucessor a missão de continuar a tradição. Neste caso, o movimento estoico se dá não apenas pela continuidade da tradição, já que é provocada, mas sobretudo pela situação do personagem que, não podendo mais exercer aquilo que gostava, arruma outra forma de continuar participando. O interessante é que para continuar participando, o evento não pode acabar e ele fica nas mãos da vontade de um sucessor que vai lhe substituir.
"... O meu anel de bamba eu deixo
A quem mereça usar.
Eu vou estar no meio do povo espiando
Minha escola perdendo ou ganhando
Mais um Carnaval"
Também podemos citar o pai de Marvin, da canção do Titãs, que vaticina: "O seu destino eu sei de cor". Há coisas que não podem ser mudadas e não temos o controle sobre elas, seja nas questões do tempo, das escolhas que se repetem, das condições sócio-econômicas e, no caso do eu-lírico que Renato Russo trouxe do Manfredini, por amor.
E este processo é preponderante no eu-lírico de Renato Russo nas canções de amor. Geralmente, um sujeito sem sorte nas questões do coração que precisa lidar com a rejeição ou a perda de alguém. Embora seja hegemônico falar de si, não fica apenas em situações retratadas na primeira pessoa. São diversas canções e variadas as situações, às vezes sobre os seus próprios relacionamentos, às vezes sobre outros casais, às vezes fala de um relacionamento homossexual, às vezes heterossexual. Nesta postagem vou me ater mais nos relacionamentos amorosos em que ele se insere. A primeira característica é que trata o amor como uma questão ética, pois desde cedo percebeu que não existe amor fora da ética. Todo amor é uma questão ética. A segunda questão é que transmite para a composição o movimento de seus próprios sentimentos, navegando entre o real e o ideal. Este movimento acaba em aceitação de que o real se sobrepõe ao ideal, como pregam os estoicos, tal como está descrito em Os Barcos:
"Eu vejo você se apaixonando outra vez
Eu fico com a saudade
Você com outro alguém
E você diz que tudo terminou
Mas qualquer um pode ver
Só terminou pra você..."
Estoicamente aceita sua falta de sorte com as questões do amor. Os filósofos estoicos veem na aceitação das coisas daquilo que não podemos mudar como a melhor forma de lidar com elas e evitar um sofrimento maior. Assim se comporta o eu-lírico de Renato Russo frente ao amor. Já se pode perceber isto em "Acrilic an Canvas", onde o eu-lírico ora "pinta" em sua mente o amor "mais perfeito que se fez", ora volta para a realidade por ser "sempre, sempre o mesmo, a mesma traição..." Nesta canção, interessante notar, usa um recurso literário que coaduna com o próprio movimento que faz entre o real e o ideal, imaginário, chamado de fuga da realidade. Assim como o amor não acontece como deseja, o eu-lírico busca na idealização uma história de amor que lhe conforte. Pinta no quadro uma imagem que não existe na realidade. Se conforma com o que inventa por ser algo mais belo do que aquilo que enfrenta.
Esta aceitação e resiliência também se faz presente em canções que não são idealizações suas, mas que lida com ausências reais, tal como em "Love in The Afternoon" ou em "Vento no Litoral". O indivíduo busca na velha sabedoria estoica o remédio para curar as feridas de alguém que partiu:
"Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim..."
O eu-lírico daqui está no mesmo lugar daquele da música Esquadros. Fazer o possível diante das situações se torna a melhor forma para afastar a decepção e a frustração. Era assim que o eu-lírico de Renato Russo lidava com as questões do amor. Contudo, não só de frustrações e decepções vivem as canções de amor do compositor. Gostava de mostrar histórias de amor comparáveis com as histórias de verdade, como a do casal Eduardo e Mônica, que de tão próxima das histórias que as pessoas vivem, se tornou filme. Por falar em filme, embora não dê nomes aos personagens, a canção "Vamos Fazer um Filme" tem essa conotação de vida que se constrói junto, com a simplicidade dos dias que passam. Nesta mesma linha seguem as canções "O Mundo Anda Tão Complicado" e "Quem inventou o Amor", com frases do tipo "gosto de ver você dormir, que nem criança com a boca aberta" ou "depois quero ver se acerto, dos dois quem acorda primeiro". Eram músicas que representam um respiro àquelas mais pesadas, talvez um gesto estoico de amparo a si mesmo.
Então, Renato traz as relações amorosas das mais diversas formas, de casais que constroem suas vidas lado a lado, até suas próprias desilusões amorosas, passando pela própria confusão na adolescência entre o que sentia e o conflito gerado por este sentir das canções dos primeiros discos.
"Soul Parsiful" (alma tranquila), tal como sugere o título, surge como um resumo de tudo isto, por coincidência, ou nem tanto, no último disco com Renato vivo. Aqui o eu-lírico está numa posição de quem encontrou o seu lugar. Está vivendo um amor sereno e a canção de amor agora é para ele próprio. Aprendeu que a melhor forma de sentir o amor do outro é amar a si mesmo, amando aquilo que está vivendo. A serenidade deste amor traz a força necessária para enfrentar os desafios que se apresentam a ponto de transformá-los em meras situações corriqueiras. O elemento religioso que antes aparecia como elemento de expurgo da culpa, agora aparece como uma oração, elemento integrante do relacionamento, pois tudo está integrado.
Tenho anis, tenho hortelã,
Tenho um cesto de flores
Eu tenho um jardim
E uma canção
Vivo feliz, tenho amor
Tenho coragem, sei quem eu sou
Eu tenho um segredo
E uma oração...
As coisas simples e naturais se misturam aos sentimentos mais profundos e a elementos de fé. O segredo que aparecia em Daniel na Cova dos Leões e Se Fiquei Esperando meu Amor Passar, que o angustiava, já não o atormenta mais. Agora alcançou a serenidade estoica, livre da culpa. Agora é capaz de fazer uma canção a partir do seu sentir, dando ao sentir do outro o merecido papel. Assim, já não sofre pela expectativa criada e não fica a mercê do amor do outro, por isso começa a canção afirmando "ninguém vai me dizer o que sentir" e termina com "eu vou fazer uma canção de amor pra mim". Fazer uma canção de amor para si é a melhor forma de fazer uma canção para o outro. Amar o que vive com o outro passa a ser a melhor forma de amá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário