Com o decorrer do tempo muitos artistas homenagearam as mulheres com canções que reconheciam-nas fortes, exaltando a forma como elas lidam com a vida. Porém, é bom que se diga, que o retrato mais comum da figura feminina no cancioneiro brasileiro aparece como objeto de desejo sexual, ainda que às vezes isso venha disfarçado de elogio à beleza feminina.
Alguns artistas tentaram trazer o tema de uma forma em que a exaltação à mulher saísse deste lugar comum, embora geralmente tenham caído para um olhar ainda masculino e escritas essas canções sob esta ótica. Erasmo Carlos, por exemplo, em " Mulher" traz o tema sob a ótica de "três homens carentes e dependentes da força da mulher"... A força da mulher aqui é derivada da fraqueza de quem depende dela e não de sua força em si. Sei, estou sendo duro na análise, o que quero dizer é que a mim apresenta ainda contornos de um elogio forçado. Contudo, é só uma impressão pessoal, a iniciativa de Erasmo é válida. O seu parceiro de trabalho, Roberto Carlos, passou uma fase da carreira em que fazia elogios às mulheres por suas características físicas: gordinha, baixinha... A intenção, eu sei, era de valorizar esses segmentos, vítimas de preconceito, mas ainda assim, contendo um tanto de inadequação na abordagem. A música Corpo e Luz, de autoria de André Sperling, em parceria com P.C. Pinheiro e Vagner inicia falando da mulher de vida sofrida e faz uma bela homenagem. Os versos finais, porém, mostram que a figura da mulher está sempre atrelada ao desejo e ao viver masculino com os versos " mas sua paixão precisa saciar/ Quem vai neste corpo deitar". É mais uma denúncia que uma visão do papel feminino, o que torna ainda mais meritório o contexto da música, mas mostra ainda uma necessidade de uma contraposição da figura masculina. Portanto, a mulher retratada por Erasmo vive em função da família, as caricatas de Roberto são vistas a partir de um viés de compaixão, que é tudo o que não se quer numa música de exaltação e, esta mulher da canção Corpo é Luz, mesmo sofrida e de tantas lutas, precisa saciar o desejo masculino. É difícil encontrar uma música que seja uma autêntica exaltação do feminino, que seja por quem a mulher é e não sobre a função que exerce. Talvez em "Maria, Maria" , de Milton Nascimento, encontremos esta mulher.
E as mulheres de Renato Russo?
Um dos motivos que tornam Renato Russo um grande letrista é a forma como expõe os temas. Com as mulheres não é diferente. Ele tem uma forma de abordagem única e sistemática. Apresenta pelas mulheres um respeito muito grande, o que transparece claramente no decorrer da obra. Fala da objetivação vulgar como são tratadas, da opressão, da violência e, sobretudo, quando quer enaltecer, o faz de forma ímpar, sem falsidade e elementos de compaixão que mais a rebaixam que enaltecem.
Mônica é representada como a inteligente e madura na relação com Eduardo. Porém, mesmo expondo as diferenças, não apresenta uma Mônica que faz uso disso para humilhar Eduardo, muito pelo contrário, dava-lhe dicas sobre temas que necessitavam de abrangência intelectual e não se importava com a pouca cultura demonstrada por Eduardo. A relação era de parceria que, ao fim das contas, era o que queria demonstrar Renato com esta canção.
A personagem que melhor reflete o pensamento e a forma como Renato quer expor as mulheres é Leila. Ele apresenta uma mulher forte, lutadora, que vive seu dia a dia dando conta de tudo, dos filhos aos carnês. É uma mulher que cria os filhos sozinha e a figura masculina aparece em duas circunstâncias, sendo a primeira quando comenta com seu interlocutor que precisa de um homem para lidar com as baratas, fala feita de forma leve e irônica e, a segunda, e mais importante, é a presença do próprio interlocutor que conversa com Leila como um amigo confidente, que a admira:
"...Adoro teu olhar
Adoro tua força
E Adoro dizer teu nome: Leila
As vezes as coisas
São difíceis minha amiga
Mas você sabe enfrentar
A beleza desta vida..."
A construção da canção se dá por admiração pura e sincera, sem afetacões. Não vem como alguém compelido a escrever sobre o tema, mas de alguém que se sente realmente impactado pelo valor que o tema traz. A recorrência com que a mulher aparece nas canções de Renato Russo, quase sempre com o mesmo viés demonstra isso. Mesmo quando vem num contexto amoroso, como em Ainda é Cedo, mesmo neste cenário vem em forma de admiração:
"Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas era me tratava como um rei
Era fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir."
Aqui mostra um eu-lírico masculino exaltando a mulher como alguém com objetivos a serem alcançados e, ele, alguém inerte, ainda imaturo para a vida. Até que ela não encontra mais eco no relacionamento e o deixa, mas ele não a culpa pela decisão porque consegue enxergar que a culpa pela perda se deve unicamente a ele, restando-lhe lamentar que ainda é cedo.
Portanto, a mulher retratada por Renato nos leva à discussão do feminino nos tempos atuais e nos coloca frente a frente com a filosofia de Simone de Boeveald, existencialista, que afirmava que a mulher, historicamente, é mais um produto da cultura do que aquilo que poderia ser ou que realmente é . Delegaram um papel à mulher e a condicioram neste envólucro de ser dona de casa, mãe e amante. Leila de Renato traz à tona esta mulher vislumbrada por Simone de Beoveald.
Um outro olhar masculino da literatura mundial a tratar o tema do feminino com este respeito e admiração vem de Eduardo Galeano. Em inúmeros de seus aforismas, tenta trazer alegorias em que reconta a história da humanidade sob ponto de vista matriarcal ao invés do patriarcal. Numa dessas alegorias conta a história de que homens mataram as mulheres de uma tribo e, a partir de então, as crianças foram ensinadas que seriam as mulheres submissas aos homens, fundando o estado patriarcal. Ou seja, o mundo foi antes matriarcal, virou patriarcal através de um golpe sórdido dos homens. As famílias desde então se formatam sobre esta égide do homem como chefe da casa. Numa outra alegoria Galeano conta que na areia haviam pegadas de um casal. Num dado momento as pegadas da mulher sumiram e se encontraram novamente com as pegadas do homem mais adiante. Com isto quis mostrar Galeano que a mulher é mais propensa que o homem a buscar algo diferente, a mais corajosa para ver o que existe além do que enxergam no caminho. Aquela capaz de ruptura. É a leitura do papel de Eva feita pelos Gnósticos de que ela deveria ser exaltada pelo "atrevimento" e não condenada como a desobediente tal como é descrita pela tradição judaico-cristã.
Renato Russo, assim como Galeano, fica neste impasse entre como se dá o papel da figura feminina e como deveria ser. Embora não busque as causas que levaram a isso, como faz Galeano, busca denunciar os abusos sofridos. Não consegue responder porque alguém que julga mais forte, mais determinada, mais madura, etc..., possa se sentir constantemente ameaçada e amordaçada. Talvez a resposta esteja numa proposta que fez a si mesmo: "um dia pretendo tentar descobrir porque é mais forte quem sabe mentir"... Aí encontra Galeano. Talvez o escritor uruguaio não tivesse contando apenas uma alegoria... Talvez seja verdade desta vez.
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