quinta-feira, 21 de novembro de 2024

RENATO RUSSO E AS MULHERES

Com o decorrer do tempo muitos artistas homenagearam as mulheres com canções que reconheciam-nas fortes, exaltando a forma como elas lidam com a vida. Porém,  é bom que se diga, que o retrato mais comum da figura feminina no cancioneiro brasileiro aparece como objeto de desejo sexual, ainda que às vezes isso venha disfarçado de elogio à beleza feminina. 

Alguns artistas tentaram trazer o tema de uma forma em que a exaltação à mulher saísse deste lugar comum, embora geralmente tenham caído para um olhar ainda masculino e escritas essas canções sob esta ótica. Erasmo Carlos, por exemplo, em " Mulher" traz o tema sob a ótica de "três homens carentes e dependentes da força da mulher"... A força da mulher aqui é derivada da fraqueza de quem depende dela e não de sua força em si. Sei, estou sendo duro na análise, o que quero dizer é que a mim apresenta ainda contornos de um elogio forçado. Contudo, é só uma impressão pessoal, a iniciativa de Erasmo é válida. O seu parceiro de trabalho, Roberto Carlos, passou uma fase da carreira em que fazia elogios às mulheres por suas características físicas: gordinha, baixinha... A intenção, eu sei, era de valorizar esses segmentos, vítimas de preconceito, mas ainda assim, contendo um tanto de inadequação na abordagem. A música Corpo e Luz, de autoria de André Sperling, em parceria com P.C. Pinheiro e Vagner inicia falando da mulher de vida sofrida e faz uma bela homenagem. Os versos finais, porém, mostram que a figura da mulher está sempre atrelada ao desejo e ao viver masculino com os versos " mas sua paixão precisa saciar/ Quem vai neste corpo deitar". É mais uma denúncia que uma visão do papel feminino, o que torna ainda mais meritório o contexto da música, mas mostra ainda uma necessidade de uma contraposição da figura masculina. Portanto, a mulher retratada por Erasmo vive em função da família, as caricatas de Roberto são vistas a partir de um viés de compaixão,  que é tudo o que não se quer numa música de exaltação e, esta mulher da canção Corpo é Luz, mesmo sofrida e de tantas lutas, precisa saciar o desejo masculino. É difícil encontrar uma música que seja uma autêntica exaltação do feminino, que seja por quem a mulher é e não sobre a função que exerce. Talvez em "Maria, Maria" , de Milton Nascimento, encontremos esta mulher.

E as mulheres de Renato Russo?

Um dos motivos que tornam Renato Russo um grande letrista é a forma como expõe os temas. Com as mulheres não é diferente. Ele tem uma forma de abordagem única e sistemática. Apresenta pelas mulheres um respeito muito grande, o que transparece claramente no decorrer da obra. Fala da objetivação vulgar como são tratadas, da opressão, da violência e, sobretudo, quando quer enaltecer, o faz de forma ímpar, sem falsidade e elementos de compaixão que mais a rebaixam que enaltecem.

Mônica é representada como a inteligente e madura na relação com Eduardo. Porém,  mesmo expondo as diferenças, não apresenta uma Mônica que faz uso disso para humilhar Eduardo, muito pelo contrário, dava-lhe dicas sobre temas que necessitavam de abrangência intelectual e não se importava com a pouca cultura demonstrada por Eduardo. A relação era de parceria que, ao fim das contas, era o que queria demonstrar Renato com esta canção.

A personagem que melhor reflete o pensamento e a forma como Renato quer expor as mulheres é Leila. Ele apresenta uma mulher forte, lutadora, que vive seu dia a dia dando conta de tudo, dos filhos aos carnês. É uma mulher que cria os filhos sozinha e a figura masculina aparece em duas circunstâncias, sendo a primeira quando comenta com seu interlocutor que precisa de um homem para lidar com as baratas, fala feita de forma leve e irônica e, a segunda, e mais importante, é a presença do próprio interlocutor que conversa com Leila como um amigo confidente, que a admira:


"...Adoro teu olhar

Adoro tua força 

E Adoro dizer teu nome: Leila

As vezes as coisas 

São difíceis minha amiga

Mas você sabe enfrentar

A beleza desta vida..."


A construção da canção se dá por admiração pura e sincera, sem afetacões. Não vem como alguém compelido a escrever sobre o tema, mas de alguém que se sente realmente impactado pelo valor que o tema traz. A recorrência com que a mulher aparece nas canções de Renato Russo, quase sempre com o mesmo viés demonstra isso. Mesmo quando vem num contexto amoroso, como em Ainda é Cedo, mesmo neste cenário vem em forma de admiração:

"Uma menina me ensinou

Quase tudo que eu sei

Era quase escravidão 

Mas era me tratava como um rei

Era fazia muitos planos

Eu só queria estar ali

Sempre ao lado dela 

Eu não tinha aonde ir."


Aqui mostra um eu-lírico masculino exaltando a mulher como alguém com objetivos a serem alcançados e, ele, alguém inerte, ainda imaturo para a vida. Até que ela não encontra mais eco no relacionamento e o deixa, mas ele não a culpa pela decisão porque consegue enxergar que a culpa pela perda se deve unicamente a ele, restando-lhe lamentar que ainda é cedo.


Portanto, a mulher retratada por Renato nos leva à discussão do feminino nos tempos atuais e nos coloca frente a frente com a filosofia de Simone de Boeveald, existencialista, que afirmava que a mulher, historicamente, é mais um produto da cultura do que aquilo que poderia ser ou que realmente é . Delegaram um papel à mulher e a condicioram neste envólucro de ser dona de casa, mãe e amante. Leila de Renato traz à tona esta mulher vislumbrada por Simone de Beoveald.

Um outro olhar masculino da literatura mundial a tratar o tema do feminino com este respeito e admiração vem de Eduardo Galeano. Em inúmeros de seus aforismas, tenta trazer alegorias em que reconta a história da humanidade sob ponto de vista matriarcal ao invés do patriarcal. Numa dessas alegorias conta a história de que homens mataram as mulheres de uma tribo e, a partir de então, as crianças foram ensinadas que seriam as mulheres submissas aos homens, fundando o estado patriarcal. Ou seja, o mundo foi antes matriarcal, virou patriarcal através de um golpe sórdido dos homens. As famílias desde então se formatam sobre esta égide do homem como chefe da casa. Numa outra alegoria Galeano conta que na areia haviam pegadas de um casal. Num dado momento as pegadas da mulher sumiram e se encontraram novamente com as pegadas do homem mais adiante. Com isto quis mostrar Galeano que a mulher é mais propensa que o homem a buscar algo diferente, a mais corajosa para ver o que existe além do que enxergam no caminho. Aquela capaz de ruptura. É a leitura do papel de Eva feita pelos Gnósticos de que ela deveria ser exaltada pelo "atrevimento" e não condenada como a desobediente tal como é descrita pela tradição judaico-cristã.

Renato Russo, assim como Galeano, fica neste impasse entre como se dá o papel da figura feminina e como deveria ser. Embora não busque as causas que levaram a isso, como faz Galeano, busca denunciar os abusos sofridos. Não consegue responder porque alguém que julga mais forte, mais determinada, mais madura, etc..., possa se sentir constantemente ameaçada e amordaçada. Talvez a resposta esteja numa proposta que fez a si mesmo: "um dia pretendo tentar descobrir porque é mais forte quem sabe mentir"... Aí encontra Galeano. Talvez o escritor uruguaio não tivesse contando apenas uma alegoria... Talvez seja verdade desta vez.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

RENATO RUSSO, CANÇÕES DE AMOR E O ESTOICISMO

 O Estoicismo é uma escola filosófica que prega a serenidade nas situações para estabelecer harmonia a fim de chegar a uma situação de bem estar. A aceitação do que não se pode mudar ou que não se tem o poder de intervir é um dos processos para se chegar a este equilíbrio. Num relacionamento amoroso, você não tem poder sobre o sentimento e a vontade do outro, num dia ele está ao seu lado e no outro pode não mais estar. Tampouco pode infruir no que pode acontecer. A morte, por exemplo, é um fator da qual não se tem o controle. Por isso é preciso ter serenidade para passar pelo processo da aceitação. Isto é perfeitamente descrito, por exemplo, na música Esquadros, de Adriana Calcanhoto com quem, inclusive, Renato gravou dueto em programa de TV:

"Meu amor cadê você

Eu acordei 

Não tem ninguém ao lado..."

Nesta música Adriana usa o termo remoto controle, uma alusão ao controle remoto, um aparelho que permite controlar de longe. Esta inversão para remoto controle inverte também a possibilidade de controle do sujeito, uma vez que a vida está ligada a fatores que fogem de nossa alçada. Esquadros é uma música síntese do pensamento estoico. Adriana fez para seu irmão cego, refletindo sobre a impossibilidade de agir sobre isso. A partir desta reflexão, vem ao pensamento uma série de outras situações das quais não tem o poder de agir ou modificar, sendo, portanto, remoto o controle sobre elas. Uma dessas situações é sobre a vontade do outro nas questões do amor, pois um dia a pessoa pode amanhecer contigo e nos outros seguintes não mais... E a melhor forma de agir sobre isso é aceitar.

Inúmeras outras canções vêm carregadas deste conceito, nos diversos aspectos da vida, principalmente através de compositores como Oswaldo Montenegro e Renato Teixeira.  Tal conceito está  presente em diversos ritmos, como o expressado pelo eu-lírico de "Não Deixe o Samba Morrer". O sujeito já não consegue mais fazer o que fazia antes e agora tem que se contentar em buscar novas formas de participar do processo. Neste caso ele não pode mais sambar, então deixa a sucessor a missão de continuar a tradição. Neste caso, o movimento estoico se dá não apenas pela continuidade da tradição, já que é provocada, mas sobretudo pela situação do personagem que, não podendo mais exercer aquilo que gostava, arruma outra forma de continuar participando. O interessante é que para continuar participando, o evento não pode acabar e ele fica nas mãos da vontade de um sucessor que vai lhe substituir.

"... O meu anel de bamba eu deixo

A quem mereça usar.

Eu vou estar no meio do povo espiando 

Minha escola perdendo ou ganhando

Mais um Carnaval"

Também podemos citar o pai de Marvin, da canção do Titãs, que vaticina: "O seu destino eu sei de cor". Há coisas que não podem ser mudadas e não temos o controle sobre elas, seja nas questões do tempo, das escolhas que se repetem, das condições sócio-econômicas e, no caso do eu-lírico que Renato Russo trouxe do Manfredini, por amor.

E este processo é preponderante no eu-lírico de Renato Russo nas canções de amor. Geralmente, um sujeito sem sorte nas questões do coração que precisa lidar com a rejeição ou a perda de alguém. Embora seja hegemônico falar de si, não fica apenas em situações retratadas na primeira pessoa. São diversas canções e variadas as situações, às vezes sobre os seus próprios relacionamentos, às vezes sobre outros casais, às vezes fala de um relacionamento homossexual, às vezes heterossexual. Nesta postagem vou me ater mais nos relacionamentos amorosos em que ele se insere. A primeira característica é que trata o amor como uma questão ética, pois desde cedo percebeu que não existe amor fora da ética. Todo amor é uma questão ética. A segunda questão é que transmite para a composição o movimento de seus próprios sentimentos, navegando entre o real e o ideal. Este movimento acaba em aceitação de que o real se sobrepõe ao ideal, como pregam os estoicos, tal como está descrito em Os Barcos:

"Eu vejo você se apaixonando outra vez

Eu fico com a saudade 

Você com outro alguém 

E você diz que tudo terminou

Mas qualquer um pode ver

Só terminou pra você..."

Estoicamente aceita sua falta de sorte com as questões do amor. Os filósofos estoicos veem na aceitação das coisas daquilo que não podemos mudar como a melhor forma de lidar com elas e evitar um sofrimento maior. Assim se comporta o eu-lírico de Renato Russo frente ao amor. Já se pode perceber isto em "Acrilic an Canvas", onde o eu-lírico ora "pinta" em sua mente o amor "mais perfeito que se fez", ora volta para a realidade por ser "sempre, sempre o mesmo, a mesma traição..." Nesta canção, interessante notar, usa um recurso literário que coaduna com o próprio movimento que faz entre o real e o ideal, imaginário, chamado de fuga da realidade. Assim como o amor não acontece como deseja, o eu-lírico busca na idealização uma história de amor que lhe conforte. Pinta no quadro uma imagem que não existe na realidade. Se conforma com o que inventa por ser algo mais belo do que aquilo que enfrenta. 

Esta aceitação e resiliência também se faz presente em canções que não são idealizações suas, mas que lida com ausências reais, tal como em "Love in The Afternoon" ou em "Vento no Litoral". O indivíduo busca na velha sabedoria estoica o remédio para curar as feridas de alguém que partiu:

"Já que você não está aqui

O que posso fazer 

É cuidar de mim..."


O eu-lírico daqui está no mesmo lugar daquele da música Esquadros. Fazer o possível diante das situações se torna a melhor forma para afastar a decepção e a frustração. Era assim que o eu-lírico de Renato Russo lidava com as questões do amor. Contudo, não só de frustrações e decepções vivem as canções de amor do compositor. Gostava de mostrar histórias de amor comparáveis com as histórias de verdade, como a do casal Eduardo e Mônica, que de tão próxima das histórias que as pessoas vivem, se tornou filme. Por falar em filme, embora não dê nomes aos personagens, a canção "Vamos Fazer um Filme" tem essa conotação de vida que se constrói junto, com a simplicidade dos dias que passam. Nesta mesma linha seguem as canções "O Mundo Anda Tão Complicado" e "Quem inventou o Amor", com frases do tipo "gosto de ver você dormir, que nem criança com a boca aberta" ou "depois quero ver se acerto, dos dois quem acorda primeiro". Eram músicas que representam um respiro àquelas mais pesadas, talvez um gesto estoico de amparo a si mesmo.

Então, Renato traz as relações amorosas das mais diversas formas, de casais que constroem suas vidas lado a lado, até suas próprias desilusões amorosas, passando pela própria confusão na adolescência entre o que sentia e o conflito gerado por este sentir das canções dos primeiros discos.

"Soul Parsiful" (alma tranquila), tal como sugere o título, surge como um resumo de tudo isto, por coincidência, ou nem tanto, no último disco com Renato vivo. Aqui o eu-lírico está numa posição de quem encontrou o seu lugar. Está vivendo um amor sereno e a canção de amor agora é para ele próprio. Aprendeu que a melhor forma de sentir o amor do outro é amar a si mesmo, amando aquilo que está vivendo. A serenidade deste amor traz a força necessária para enfrentar os desafios que se apresentam a ponto de transformá-los em meras situações corriqueiras. O elemento religioso que antes aparecia como elemento de expurgo da culpa, agora aparece como uma oração, elemento integrante do relacionamento, pois tudo está integrado.

Tenho anis, tenho hortelã, 

Tenho um cesto de flores

Eu tenho um jardim

E uma canção 

Vivo feliz, tenho amor

Tenho coragem, sei quem eu sou

Eu tenho um segredo

E uma oração...

As coisas simples e naturais se misturam aos sentimentos mais profundos e a elementos de fé. O segredo que aparecia em Daniel na Cova dos Leões e Se Fiquei Esperando meu Amor Passar, que o angustiava,  já não o atormenta mais. Agora alcançou a serenidade estoica, livre da culpa. Agora é capaz de fazer uma canção a partir do seu sentir, dando ao sentir do outro o merecido papel. Assim, já não sofre pela expectativa criada e não fica a mercê do amor do outro, por isso começa a canção afirmando "ninguém vai me dizer o que sentir" e termina com "eu vou fazer uma canção de amor pra mim". Fazer uma canção de amor para si é a melhor forma de fazer uma canção para o outro. Amar o que vive com o outro passa a ser a melhor forma de amá-lo.


domingo, 17 de novembro de 2024

RENATO RUSSO E A HOMOSSEXUALIDADE

 A questão da homossexualidade foi a bandeira mais eloquente daquelas defendidas por Renato Russo. Quem acompanha a trajetória artística pode perceber, no entanto, que não foi um caminho tão tranquilo, como de alguém que se encontra totalmente seguro de si para uma abordagem contundente sobre esta questão desde o princípio. Surgiu aos poucos, em metáforas e insinuações, até o ponto em que veio com a confissão pública de sua condição. Vendo ou lendo as entrevistas, para além das canções, pode-se perceber não somente uma preocupação com a receptividade do público, parecia haver nele uma certa culpa em aceitar tal condição, pois falava em ser de uma família tradicional italiana, católica e outros fatores culturais que dificultavam falar diretamente sobre o assunto. Não se podia ter total clareza de que estávamos diante de Manfredini ou de Russo, ou uma simbiose dos dois, que é como eu sempre interpretei.

Teve namoradas, o que poderia demonstrar uma possível tendência bissexual, mas sempre disse preferir os meninos às meninas... É possível que os relacionamentos com mulheres na juventude tenha sido apenas uma tentativa de fugir do que realmente sentia, por conta da pressão cultural do meio em que vivia. Seu relacionamento com as mulheres, como veremos num tópico posterior, era de admiração ao espírito feminino, não de desejo carnal. Basta ver a força de suas personagens femininas e a forma como abordava o tema nas canções.

Segundo o próprio Renato, a primeira vez que inseriu o tema foi na canção "Soldados" com o verso "se lembra quando era só  brincadeira fingir de ser soldado a tarde inteira". Uma forma tímida de entrar no assunto, pois a frase poderia ser interpretada como uma forma jocosa de criticar a perda de tempo e anos roubados da juventude em um front de guerra. Depois que ele revelou ser uma referência é que se percebe que faz sentido. Um homossexual, ao ouvi-la, provavelmente faria esta interpretação de forma mais rápida.

Já no segundo disco, com "Daniel na Cova do Leões", o recado começa a ficar mais claro com frases como "teu corpo é meu espelho e em ti navego" e "desafio o instinto dissonante", onde o instinto Adão e Eva (dissonante/diferente) era desafiado por ele que naturalmente se sentia atraído por um igual (espelho). Contudo, as frases citadas acima não trouxeram de cara a percepção de que se tratava de uma música com temática gay para a maioria das pessoas. Isto veio com a declaração de Renato em entrevista, de que os primeiros versos seriam, inclusive, uma alusão ao sexo oral. Vejamos:

"Aquele gosto amargo de teu corpo

Ficou na minha boca por mais tempo

De amargo então, salgado, ficou doce

Assim que teu cheiro forte e lento 

Fez casa nos meus braços..."


Uma primeira consideração a fazer tem relação com o que disse Renato na entrevista sobre o início da canção ser uma referência ao sexo oral. Por si só não a transforma numa música com temática gay uma vez que heterossexuais também praticam o sexo oral. Renato não está retratando simplesmente do ato em si, mas  revelando o surgimento de um sentimento em praticá-lo dentro de circunstâncias que o desaprovavam, como as apresentadas anteriormente, dos aspectos culturais, familiares e pessoais trazidos com o ato e suas repercussões, às vezes com ódio e visto como depravação. Não é o que se pratica, mas com quem... Não que Renato não tivesse clareza de que o que sentia era puro e natural, mas é claro que algo o incomodava, tal como revelou em maio de 1989, para o Jornal do Brasil: "Eu era muito inseguro. Porque eu sempre soube que eu era gay, sempre. O mundo me dizia que eu era doente, pervertido. Eu queria ser completamente diferente e, ao mesmo tempo, aceito pelas pessoas ". Renato revelou na entrevista anterior (sobre o sexo oral) o que queria deixar claro, que a canção tinha relação  com a homossexualidade, mas não se desnudou por completo. Os dois primeiros versos trazem realmente a descrição de um sexo oral que "desta vez" o gosto amargo ficou por mais tempo. Cabe perguntar: por que desta vez o gosto amargo ficou por mais tempo? Expressão de um sentimento ou apenas uma descrição objetiva? Para efeito de raciocínio e evitar possível engano interpretativo, vou considerar que seja apenas a descrição de um ato, sem simbologia de sentimentos contidos nestes dois primeiros versos. Acontece que o terceiro verso "de amargo então, salgado, ficou doce" é inequívoco que trata-se de um sentimento, e que remete ao amargo do verso anterior. Então, dá para verificar que à época em que escreveu Daniel na Cova dos Leões, havia ainda um certo conflito entre o que sentia e a culpa sentida  pelos aspectos psico-sociais que o tema trazia. É bom lembrar que nesta época estava em voga uma teoria de que a homossexulidade tratava-se de uma doença, sendo uma "anomalia" biológica. A versão anterior era de que seria coisa do demônio... Imagine os conflitos internos gerados, dentro do contexto, por mais que Renato fosse seguro do que sentia e por mais que soubesse ser natural, porque assim é que sentia.

O restante da música vai corroborar com os versos iniciais desta busca de equilíbrio entre o que o eu-lírico sente e o julgamento que faz deste sentir. Fala em correnteza, incerteza, confusão... Esta confusão, contudo, não é sobre o que sente, pois o que é já sabe muito bem. É sobre fazer isto se tornar possível sem que seja "errado". É bom lembrar aqui o verso "faço o nosso meu segredo mais sincero"... Demonstra insegurança. Ele precisa transformar o amargo em doce de forma completa, que permita ser às claras e que vá além de quando está nos braços de quem ama.

Outra consideração a ser feita é sobre o título da canção estar vinculado à uma passagem bíblica. Um dos maiores entraves sociais de considerar a homossexualidade como algo natural e normal é a religião católica, da qual se filiava a família Manfredini. Renato, então, faz um confronto entre o relato bíblico acerca do profeta Daniel e a situação vivida pelo eu-lírico da canção, descrito na primeira pessoal, diga-se de passagem. Daniel era um dos Sátrapas do Rei Dario e invejado pelos outros por conta da preferência demonstrada pelo rei. Como era hebreu e não adorava nada mais além de Deus, os seus desafetos usaram esse fato para colocá-lo contra Dario. Induziram o rei a proclamar um edito de que deveria ser adorado e quem não o fizesse seria condenado a ser jogado na cova dos leões famintos. Como previsto, por fidelidade a Deus, Daniel se recusou a prestar adoração e, Dario, mesmo percebendo a armadilha que fora criada contra seu preferido, não teve outra alternativa que impor o castigo descrito em seu decreto. Daniel foi então jogado na Cova dos Leões onde ficou por alguns dias, sobrevivendo a eles. Dario, então, mandou que o retirasse e lhe concedeu o perdão real, vendo que a fé de Daniel era poderosa. 

Colocar um elento bíblico neste tema é uma forma de exorcizar demônios... E uma certa provocação. Daniel é perseguido por aquilo que é, tal e qual os homossexuais o foram através de séculos. Renato, com essa estratégia, usa um elemento da crença de quem mais perseguiu, para estabelecer um elemento comparativo. E por falar em fé, aí se estabelece a segunda consideração sobre a presença da passagem bíblica estar nesta canção. Assim como a fé em Deus salvou Daniel dos leões na cova, a fidelidade ao que o eu-lírico sente e ao que ele é torna-se aquilo que o pode salvar, conforme aponta o final da canção. 

"Mas tão certo quanto o erro 

De ser barco a motor 

E insistir em usar os remos

É o mal que a água faz quando se afoga

E o salva-vidas não está lá 

Porque não o vemos."

A fé é o elemento salvador e por ser invisível aos olhos não é acessada. Não se pode ser o que não é,  fazer o que não quer, ainda que cada individuo seja parte de um todo. Um todo não pode proibir ao indivíduo uma conduta, se esta não lhe atinge. Não existe um edito sagrado de um Deus proibindo um filho seu  de seguir a própria natureza. Mas existe um salva-vidas próximo, a fé, para confrontar o medo trazido pelos leões sociais.

Kieerkgaard, filósofo, afirmou que o ser humano possui três estágios: o estético, o ético e o espiritual (de fé). Há aqueles que vivem segundo as aparências e se importam apenas com as questões mais rasas. Estes não passam do estágio estético. Os que se aprofundam um tanto a mais e se importam com questões que vão além das aparências, vivem o estágio ético. Mas há ainda um estágio superior. O sujeito completo é o sujeito de fé, o espiritualizado que nada teme por viver a liberdade da autodeterminação e a segurança de saber quem é. Sabe por onde, e quais elementos possui para navegar. O sujeito é sua própria bússula. É esse sujeito, o da fé, que o eu-lírico da canção busca para salvar-se, o problema é que insiste em usar os remos quando é um barco a motor. Procura o salva-vidas ao redor, sem perceber que a salvação está dentro de si.

Outra música com esta temática, ainda ambientada em um período anterior ao assumir publicamente sua homossexualidade foi "Se Fiquei Esperando meu Amor Passar". E vem apresentando as mesmas características: simbologias, metáforas, sentimentos dúbios e, novamente, a religiosidade cristã... Inicia a canção dizendo não querer se machucar de novo por culpa da amor, por não querer viver em erro. O sentimento de culpa era visível no eu-lírico, embora soubesse claramente quem era e o que sentia. Vivia em erro caso se entregasse ao amor sentido e vivia em erro caso não se entregasse por conta da carga de repúdio recebida pelo seu entorno social. Não vê  saída.  Daniel na Cova dos Leões continuava em Se Fiquei Esperando meu Amor Passar... E alguns anos depois, embora agora já conseguisse rimar "romã com travesseiro" e a correnteza já tivesse alguma direção, os elementos ainda estavam ali. Agora já havia a sensação de que "podiam namorar", mas ainda haviam enfrentamentos a serem travados, tal como aparece nos versos seguintes:

" Se fiquei esperando meu amor passar

Já me basta que estava, então, longe de sereno

E fiquei tanto tempo duvidando de mim

Por fazer amor, por fazer sentido

Começo a ficar livre, acho que sim

De olhos fechados não me vejo 

E você sorriu pra mim..."


Se em Daniel o eu-lírico sentiu o gosto amargo adocicar nos braços amados, aqui é o sorriso quem o conduz para a liberdade e o acolhe. Porém, novamente aparece um valor preponderante na cabeça do eu-lírico, o mesmo fator que lhe punha trava, mesmo sabendo que não havia erro algum, por todo este tempo, entre uma canção e outra. E então cai de novo na religiosidade ao encerrar a canção com um mantra católico: "cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo tende piedade de nós".

Segundo os evangelhos foi João Batista quem pronunciou Jesus como cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Renato então, ao encerrar com esse mantra confessa ainda ter alguma dificuldade em lidar com a situação e, ao mesmo tempo, se dá conta de que não deve prestar conta a mais ninguém além daquele que teria condições de perdoar, se culpa houvesse, ao mesmo tempo em que passa o recado a quem se acha no direito de julgar.  Duas músicas com a mesma temática, dois homens de fé tirados da Bíblia como simbologias da força existente em cada ser humano e meio de salvação. E aqui está presente outra sacada de Renato: Ele podia escolher Abraão, José, Jó, e outros mais visíveis entre os homens de fé do contexto bíblico, mas escolheu Daniel e o João Batista. O motivo da escolha está no fato de que esses não eram bem aceitos no meio em que viviam, ao contrários dos outros personagens, que eram símbolos de virtude. Ambos incomodavam o status quo da sociedade, Daniel, aos sátrapas, João, aos poderosos governantes e aos líderes religiosos.

Faz-se necessário esclarecer, quando se fala aqui em salvação, não é uma referência ao que se é (a homossexualidade), mas sobre como lidar com a situação em que, mesmo inocente, se vê jogado aos leões. Cabe esclarecer também que quando se fala em culpa, também não é em relação ao fato do eu-lírico ser homossexual, a culpa vem refletida sobre um sentimento de deslocamento do meio em que vive.

Para complementar, é  preciso identificar que durante a trajetória artística,  Renato Russo lidou com o tema de duas formas diferentes. A primeira forma foi esta apresentada até aqui, de modo velado, cuidadoso, com elementos religiosos e destacando a luta contra o preconceito. A segunda fase, pode-se dizer assim, veio junto com a declaração pública de sua homossexualidade. A partir de então o assunto é abordado de forma mais leve, em canções como "O Mundo Anda Tão Complicado" e "Vamos Fazer um Filme", pois agora, "pode namorar" mesmo. Ainda pedia respeito, mas agora parece ter alcançado o ser de fé que Kieerkgaard propunha. O leões não mais assustavam e as agruras do eu-lírico agora se limitavam aos problemas trazidos pelo próprio relacionamento e como Renato lidava com eles. A reflexão não é mais voltada, nesta segunda fase, que vem com "O Descobrimento do Brasil", ao que o outro pode fazer sobre o que sinto, mas o que eu posso fazer sobre o que sinto... É uma guinada e tanto na forma de tratar o assunto. Não que tivesse mudado muito a forma como a sociedade lidava com a questão. O preconceito continuava, assim como as mortes, as agressões e todo tipo de opressão. Mas Renato agora estava preparado para abordar o tema sobre um outro viés, com as bênçãos do cordeiro de Deus.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

RENATO RUSSO E A POLÍTICA

 Já vimos na postagem anterior (Russell e Russo) que Renato Russo atuava politicamente em cima de causas. Do ponto de vista ideológico manifestava aversão ao Fascismo e a ditaduras, falando sobretudo da ditadura militar no Brasil. Na transição política do início dos anos 1980, houve a anistia, um combinado entre oposição e governo militar, onde os exilados políticos podiam voltar ao país e os militares não responderiam por suas ações praticadas durante o governo. Renato Russo se colocava contra esta anistia, pensava que os crimes e torturas não deveriam ser esquecidos. O Brasil nunca fez uma revisão séria quanto a isto e o futuro mostrou que Renato tinha razão. Em 08 de janeiro de 2023, após Jair Bolsonaro não conseguir se reeleger, seus apoiadores mais ferrenhos, inconformados com a derrota, invadiram a praça dos três poderes vandalizando o que encontravam pela frente, sob o argumento de que as eleições haviam sido fraldadas. Não sem antes por dois meses seguidos agruparem-se em frente aos quartéis pedindo intervenção militar. No decorrer destes meses, entre a eleição e a posse do eleito Lula, muitos eventos ocorreram, tal como a colocação de bombas em um caminhão deixado no aeroporto de Brasília, estradas trancadas e depredações. Pediam intervenção militar para impedir a posse de Lula. A anistia de 40 anos atrás davam uma certa autorização a certos saudosistas do governo militar de proclamar novamente o desejo de ter o país sob comando de uma ditadura. Em 13 de novembro de 2024 um homem jogou bombas contra o prédio do STF e depois se atirou sobre uma delas, explodindo a si mesmo. A sanha golpista continuava no discurso dos derrotados na eleição e arregimentavam pessoas para tais ações. Sobre a anistia, que, como vimos, teve repercussão futura, Renato Russo escreveu em "La Maison Dieu"

"...Eu sou a Pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
General que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente de todos os desaparecidos
O choque elétrico e os gritos
Parem por favor, isso dói...
...Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de merda
Não, nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém"


Os anos de chumbo eram assunto recorrente de Renato Russo. "1965 (Duas Tribos)" é uma referência ao AI-5, o decreto mais duro do período. O Brasil estava definitivamente nas mãos dos ditadores fardados que usavam o argumento de  estar salvando o país do comunismo. Remete a um tempo em que Renato era ainda criança e como a propaganda oficial funcionava em favor dos comandantes, pois qualquer crítica era passível de torturas. O ufanismo pátrio não permitia que algo fosse dito contra o governo, pois seria o mesmo que se colocar contra a pátria, o que era passível de tortura, prisão e, aos mais influentes, exílio. Duas Tribos representa este momento:

"...Cortaram meus braçosCortaram minhas mãosCortaram minhas pernasNum dia de verão..."

Nos versos acima podemos observar uma alusão às torturas aos que se levantavam contra o regime. O que legitimava tais castigos era o discurso representado nos versos abaixo:

"Quando querem transformarDignidade em doençaQuando querem transformarInteligência em traiçãoQuando querem transformarEstupidez em recompensaQuando querem transformarE esperar sem maldição"

Como podemos ver a inversão sobre o que é virtude e o que é vício, bem típico da ideologia fascista, estava presente. Já os versos abaixo mostram como este discurso era usado. Os que se deixavam levar por ele não se importavam com o que acontecia aos que não se conformavam com a situação. Tal como crianças ficam alheias enquanto brincam, os conformados repetiam o Junior (Renato Manfredini) criança que, com 4 anos, era realmente inocente e aprendera estar diante do maior presidente do mundo.

"Mataram um menino
Tinha arma de verdade
Tinha arma nenhuma
Tinha arma de brinquedo
Tenho Autorama
Tenho Hanna-Barbera
Tenho pera, uva e maçã
Tenho Guanabara
E modelos Revell"

Enquanto uns morrem por conta do regime por não  serem bons filhos da pátria mãe gentil, outros são beneficiados por ela e ensinados a admirarem como a melhor das mães. Renato afirmou em entrevista como as crianças eram estimuladas a fazer redações sobre as virtudes do presidente... Por fim, a música termina com a frase ufanista da época:

"O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país do futuro
O Brasil é o país
Em toda e qualquer situação
Eu quero tudo pra cima
Pra cima
Pra cima"


FASCISMO

O fascismo foi a posição ideológica mais combatida por Renato Russo. Sempre que tinha oportunidade marcava sua posição. Nas músicas os atos fascistas normalmente não aparecem acompanhados do nome, mas eram facilmente identificados nas referências feitas às chacinas, no desrespeito às mulheres, na exploração... 

Por causa da frase "disciplina é liberdade" em Há Tempos, Renato foi acusado de fascista, imagine... o verso lido isoladamente pode dar  sentido tal acusação, mas dentro do contexto da música não se sustenta, passa a ser, como diz a gíria, forçar a barra. O próprio Renato explicou que não se trata de um ser humano ou grupo impor limite a outro, isso sim seria um fascismo, mas sobre autodisciplina, do auto-controle para alcançar a autonomia e ser verdadeiramente livre. Os indisciplinados são escravos de suas indisciplinas, pois não conseguem se auto-determinar e se autogerir. O compositor disse que se inspirou em Orson Wells, escritor do livro 1984.
Esta ideia de que a disciplina não é exatamente o que tolhe a liberdade já vem dos tempos dos gregos clássicos... Aristóteles diz que o equilíbrio é o melhor caminho pois a sabedoria está no meio. Não se pode agir com extremismos, como é o caso do Fascismo. Para uma comida ficar boa não pode ser insonsa nem demasiadamente temperada, os temperos devem ser equilibradamente postos para harmonizar os  sabores. Para Aristóteles, existe a virtude, que está no meio, e dois vícios, suas extremidades. Como exemplo, citamos a coragem, que é uma virtude que aparece na canção. Seus vícios são a covardia (por falta) e a temeridade (por excesso). Toda virtude tem um vício por falta e outro por excesso. Autocontrole, para um temeroso, o faz chegar à coragem, que a virtude correspondente. Ser temeroso, o faz ir para um caminho não virtuoso, por estar escravo de seus impulsos. Assim, controlar estes impulsos e chegar ao ponto virtuoso, ao equilíbrio, que é a coragem, se faz através da disciplina. Então, disciplina como liberdade, tal como aparece na música Há Tempos está colocada neste contexto.

Epicuro, outro filósofo da antiga Grécia, tem esta mesma linha de pensamento. Ele sustentava que toda ação deveria procurar o prazer. Este sentimento, no entanto, tinha em Epicuro um sentido diverso do "vida louca" que possui hoje. Está ligado ao auto-controle como obtenção de um prazer prolongado, em estar mais contente com o que se tem do que com o que e poderia ter, uma vez que isto poderia trazer mais dissabores que alegrias. Fugir do sofrimento é a melhor forma de sentir prazer e esta fuga significaria fugir dos excessos. Se você ganha uma barra enorme de chocolate é melhor comer um pedaço por dia, por um tempo estendendo o prazer, ou se impanturrar de uma só vez? Para Epicuro a primeira opção, pois além de alongar o prazer você pode estar evitando uma tremenda dor de barriga. Para este processo acontecer precisaria usar a autodisciplina. Ou seja, a disciplina liberta quando se dá por opção. 




terça-feira, 12 de novembro de 2024

RUSSELL E RUSSO

 Brethant Russell foi o outro filósofo, além de Rousseau a ser homenageado por Renato Manfredini Júnior quando escolheu incluir o sobrenome Russo em seu nome artístico. Foi um pensador a frente de seu tempo abraçando causas tais como o ECOcentrismo, ideia que coloca o meio-ambiente no lugar do ser humano como centro de tudo, que por sua vez se tornaria apenas parte integrante de algo maior, que lhe supera, o chamado ecosistema. 

Outra característica marcante do filósofo foi o fato de ter sido um PACIFISTA, inclusive rasgando sua carteira do partido trabalhista quando este partido deu aval para a ida de tropas lutar no Vietnã. Além disso, foi contrário às duas guerras mundiais e um opositor da construção da bomba atômica. 

Estas duas característica, porém, não o fizeram tão radical no que se refere a política ideológica. Suas lutas estavam sempre mais ligadas a causas. Algumas de suas participações políticas foram divergentes e até antagônicas em alguns casos, pois foi ora socialista, ora liberal, ora trabalhista, nunca esteve profundamente enraizado em nenhuma destas tendências.  

Com estas características: ecocêntrico, pacifista e volátil em termos de políticas partidárias (sem apego a elas), fica fácil imaginar porque Renato Russo se identificou com este filósofo... Provavelmente não foi pelo fato de Russell ser um grande matemático, uma vez que esta, pelo que se sabe, não fazia parte das matérias preferenciais de Renato.

Letras como "Angra dos Reis" trazem esta preocupação com a natureza, de colocar o ecocentrismo acima dos desvarios humanos e sua ganância. Já o pacifismo é outra característica bem marcante na obra de Renato Russo com canções como "Soldados" e "Canção ao Senhor da Guerra"

Quanto a política, assim como Russel, o Brasileiro era mais ligado a causas e denunciador de injustiças e maus feitos... Não era ligado a grupos partidários. O viés político ativo e não eminentemente partidário aparece em mais de uma dezena de canções, várias delas políticas, tais como "Perfeição", "Que País é Este!", " Metal Contra as  Nuvens" e "Teatro dos Vampiros", para citar alguns. Além disso, sua verve anárquica (sem apego a segmentos ideológicos) aparece em cores vivas em canções como "Gerarão Coca-Cola ". 


O ECOCENTRISMO

Angra dos Reis foi escrita num período em que a construção de usina nuclear na cidade de Angra do Reis estava em pauta e a discussão sobre os problemas ecológicos que poderiam advir deste tipo de construção para obtenção de energia estava em voga em todo o mundo, pois o desastre de Chernobyl acontecera havia pouco tempo do lançamento da canção. Esta angústia com o tema fez Renato Russo escrever:

"Mesmo que as estrelas começassem a cair

E a luz queimasse tudo ao redor

E fosse o fim chegando cedo

E você visse nosso corpo em chamas

Deixa pra lá"


Em "Fábricas" ele afirma:


"O céu já foi azul, mas agora é cinza 

E o que era verde aqui já não existe mais

Este ar me deixou minha vista cansada

Nada demais"...


Se percebe claramente a denúncia de uma ganância exploratória tanto contra o meio ambiente, quanto em torno da condição de trabalho humano em prejuízo a ambos.

Os versos irônicos "deixa pra lá" (Angra dos Reis) e "nada demais" (Fábricas) demonstram o incômodo de Renato Russo com a postura comodista que as pessoas se colocam diante destas questões que lhe são prejudiciais.

Essas canções são apenas exemplos, dentre muitas outras citações em outras canções desta verve do artista em torno do ecocentrismo e sua preocupação com o meio-ambiente. Também estava presente como lhe preocupava a forma como as pessoas colocavam a ganância acima da preservação do meio-ambiente e da saúde das espécies. 


A POLÍTICA ATIVA APARTIDÁRIA 

Do ponto de vista da política tradicional, afora seu desprezo pelas tendências fascistas, Renato Russo apresentava uma certa distância, mas extremamente político do ponto de vista de defensor de causas e das ações personalisticas, sempre guiado pela ética, ciência que as pessoas costumam relacionar apenas à corrupção monetária.  Em Renato Russo a ética ganha contornos mais abrangentes. Para ele toda ação se torna questão ética e com isso política. As relações amorosas, por exemplo, por mais íntimas que sejam  não deixam de ser políticas, uma vez que ambos os relacionantes são inseridos no meio social e, mesmo entre eles está estabelecido uma espécie de contrato do não engano, do respeito e outras definições próprias dos relacionamentos amorosos, tornando algo que é próprio de duas pessoas em um movimento que não deixa de ser político.

Se não há contradição na exigência da ética nas ações, sendo sua guia mestra, elas aparecem na obra de Renato Russo quando se trata de definições como a tendência política dos agentes políticos e suas idiosincrasias, tal como aconteceu na trajetória de Hussel. Em 1989 Renato manifestou em entrevista seu desejo em votar em Roberto Freire, então comunista (PCB) e se mostrava incomodado com o fato da pregação em voto útil em outros candidatos da mesma tendência de esquerda, uma vez que esses outros possuíam mais chances de vitória sobre os representantes da direita. Ao mesmo tempo em que declarava voto em um comunista, declarava-se capitalista numa outra entrevista, ou seja, o voto estava lincado ao seu gosto pessoal e não quanto a ideologia que o candidato representava. Renato parecia não acreditar muito nos discursos políticos como um indicador sincero das ações dos futuros governantes. De certa forma, ele acertou em termos, pois o candidato vencedor, Collor de Mello, usou entre outros argumentos para vencer a eleição, que seu oponente de segundo turno, Lula, iria bloquear a poupança. No primeiro dia de governo foi ele quem fez isso, o que motivou  Renato Russo escrever "Metal Contra as Nuvens". Aliás, esta visão de não apego a tendências partidárias, mas apegado e compromissado  às causas que julgava mais justas aparecem nos primeiros versos da cancão, que afirma por si próprio saber sobre o que lutar, ao lado de quem, sem ser um simples seguidor de um grupo guiado por alguém, o que é na forma um gesto fascista, mesmo que o conteúdo não o seja:


"Não sou escravo de ninguém 

Ninguém senhor do meu domínio 

Sei o que devo defender 

Por valor eu tenho e temo

O que agora se defaz".


É bom frisar aqui que o discurso liberal do então candidato vencedor esteve presente nos seus dois anos de governo, o que mostra que a ligação ideológica em regra acompanha o discurso, algo que Renato parecia não confiar. Acontece que um governo na democracia, não raro tem que compor com ideias que diferem um pouco do partido no poder e ceder tem sido uma prática dominante nos governos. Talvez essa volatilidade tenha contribuído para a desilusão de Renato Russo quanto à crença nas ideologias. Sua ideologia era o fazer ético. 

E o que deve ter indignado o autor nesta questão em particular foi o fato do candidato vencedor dizer que o oponente iria fazer algo que ele próprio estava pensando em fazer caso vencesse a eleição. Por ser uma medida extremamente impopular, não teve coragem de colocar sob análise do eleitor, antes, preferiu mentir, afirmando que o outro faria. A mentira ajudou a se eleger e depois de eleito, sem que precisasse mais do voto, implantou a medida. E isto está muito longe da ética pregada por Renato Russo. Aliás, nos tempos vindouros, com as redes sociais, a faikes news se tornaram mecanismos importantes utilizados por muitos políticos antiéticos e têm motivado muitos debates. Assim, podemos perceber, Renato Russo novamente aparece atualíssimo nos assuntos a que se dispunha a defender.

Uma curiosidade se apresenta no instrumental... Fazendo jus ao nome, a canção imita uma dessas tormentas de verão. Começa com um ritmo calmo, como se mostra um céu límpido; depois avança, como se nuvens se aproximassem e, de repente, a pancadaria dos raios e trovões, para depois voltar a calmaria. Imita a vida, seja pessoal ou social, com suas idas e vindas, tormentas e posterior calmaria. Sempre na esperança de que dias melhores melhores virão, tal a sensação deixada por cada calmaria depois das tormentas. Então, surgem os versos finais imbuidos desses sentimentos:

"E nossa história não estará pelo avesso assim

Sem final feliz

Teremos coisas bonitas para contar.

E até lá vamos viver

Temos muito ainda por fazer

Não olhes pra trás 

Apenas começamos 

O mundo começa agora

Apenas começamos..."


Em outras canções aparecem outras características importantes no discurso político de Renato Russo e incluir a todos como responsáveis pelos destinos da sociedade e não somente os agentes políticos é uma dessas características. E assim coloca em "Que País é Este!":

"Nas favelas, no Senado, 

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a constituição"...

A desilusão é geral e apresenta os políticos como uma mera representação ou espelho da sociedade em geral. 

Repete a fórmula em "Perfeição", desta vez de forma mais abrangente, nomeando os diversos maus feitos e delitos sociais em suas diversas camadas, tais como os praticados por estupradores e ladrões, além de apontar sua própria responsabilidade no verso em que pede perdão pela "estupidez de quem cantou esta canção". A diferença de uma canção para outra é que Perfeição termina indicando a  esperança, depois de tantas ironias, talvez uma vazão à sua verve platônica, assunto reservado para um outro tópico adiante. Este final anuncia:

"Venha, o amor tem sempre aberta

E vem chegando a primavera

nosso futuro recomeça

venha que o que vem é perfeição."

Já  que Platão está posto para outro momento adiante, por enquanto podemos nos ater a Immanuel Kant, que afirmava existir no ser humano uma consciência imanente do que é certo e errado em se fazer. Deste modo, basta que todos ajam conforme os mandamentos e preceitos estabelecidos por esta razão universal existente na consciência para que tudo funcione como relógio e daí surja a perfeita sociedade. Por exemplo, se uma pessoa sai para caminhar com seu cachorro de estimação e limpa a sujeira que o cachorro vier a fazer e todos os outros cidadãos com seus animais fizerem o mesmo por dever de consciência e respeito para com a cidade e os demais habitantes, passaríamos a viver em uma sociedade perfeita, como sugere o título da canção. Tal e qual Immanuel Kant, Renato apela para esta consciência coletiva como meio de se construir a perfeição, o problema é que esta proposta, como as melhores já lançadoas, necessitam de uma consciência coletiva abrangente em detrimento ao individualismo que as pessoas em geral não estão propensas a seguir, ignorando a máxima "disciplina é liberdade".


O PACIFISMO

Com canções como "Soldados" e "Canção ao Senhor da Guerra", Renato Russo demonstrou todo seu repúdio às guerras, como manifestado em Bertrand Russell. 

Em "Plantas Embaixo do Aquário" termina com a frase "não deixe a guerra começar", repetidas vezes como um mantra, mas inicia com "provoque o desempate", numa alusão de que a apatia também não é uma solução viável frente à vida. Todavia, este processo de desempate, além de constante, deve ser um movimento como o das plantas colocadas na parte baixa do aquário, com harmonia e equilíbrio.

Hegel, filósofo alemão, afirmava que as coisas surgem com a tese, depois a antítese, que é uma tese alternativa, para daí surgir uma síntese. Esta síntese cria uma nova tese, e dela uma nova antítese e, com isso, outra síntese se estabelece... assim sucessivamente. Este conjunto de sínteses, embora nascidos dos conflitos entre tese e antítese, podem ser resolvidos em movimentos harmônicos, tais como o diálogo, por exemplo, e cedências de parte a parte.

A guerra em si, para Renato Russo não é viável como meio de desempate que ele prega na canção... Primeiro porque a guerra já vem com interesses escusos e programados para acontecer. Existe apenas a tese, a antítese é ignorada e a síntese é o massacre de inocentes, geralmente jovens que são convencidos a lutar pelos mais variados motivos, seja patriótico ou religioso, os mais comuns. Quando não convencidos são obrigados. 

Dentro do espectro da conquista pela força, tem a questão do terrorismo, outro tema recorrente nas canções de Renato Russo. Aqui o terror aparece por vezes em sua forma tradicional, como a lembrança de um grupo terrorista da Alemanha dos anos 1970 em Baader-Meinhof Blues, outras vezes, como em A Fonte, vem lembrando as chacinas de crianças e adolescentes, outras ainda através do descaso do Estado para com seus doentes e idosos, tal como aparece em Mais do Mesmo, bem como é lembrado nos ataques a mulheres e homossexuais, duas de suas causas mais caras, em A Dança.

Assim, guerra e terrorismo são ações que fogem do escopo das boas relações humanas e nada os justificam como alternativas. Nem a conquista territorial, nem a religião, nem o patriotismo, nem ideologia... Em nada se assemeham aos movimentos das plantas nos aquários.

Chegamos então aos três conceitos que aproximam Renato Russo de Bertrand Russell: a preocupação com o meio-ambiente, o pacifismo e a forma de encarar a política por meio de causas, tendo por bússula a ética. 

sábado, 2 de novembro de 2024

ROUSSEAU E RUSSO

 Quando Renato Manfredini Jr. colocou Russo em seu nome artístico, um dos homenageados foi o filósofo francês Jean Jacques Rousseau. Em entrevista, Renato Russo, disse que gostava da ideia da bondade natural do ser humano expressa pelo filósofo. 

Mas não ficou só nisso... Muito do que escreveu nos remetem ao pensamento deste filósofo. João de Santo Cristo, de Faroeste Caboclo, não deixa de ser uma versão de Emílio, personagem de Rousseau na obra Da Educação. 

Rousseau acreditava que a essência do ser humano era naturalmente boa e a maldade surgia a partir do momento em que o ser humano se via em um ambiente em que tinha que lutar pela sobrevivência, tendo como agravante a competição que teria que travar com os outros seres humanos, que por sua vez se viam na mesma situação. Por isso as pessoas se obrigariam a firmar um contrato social. Para ilustrar a tese, Rousseau criou o personagem Emílio.

Ao nascer, Emílio foi levado para uma ilha e criado por um tutor que só lhe ensinou coisas boas estando em um lugar em que não havia motivos para competir com outras pessoas pela sobrevivência. Manteve-se bom por todo o tempo, sem criar artimanhas, sem mentir, enganar e outras atitudes que os seres humanos criados em sociedade aprendem como meio de sobrevivência. Isto comprovaria a natural bondade humana, ou seja, o homem só seria capaz de fazer o mal quando instigado ou quando julgar que fosse necessário fazê-lo. E Isto aconteceria somente quando passasse a viver em sociedade.

Esta ideia é base também para o filme "Gêmeos: mórbida semelhança", com Dani de Vitto e Arnold Shuartzeneger, onde o personagem de De Vitto foi criado em um orfanato e o de Arnold foi para uma ilha, sendo tutorado por um professor. Nasceram gêmeos e foram separados ao nascer. A criação diferente, em diferentes ambientes, contribuíram na moldura do caráter de cada um. Enquanto o personagem de Arnold, na ilha, se manteve puro e íntegro,  o personagem de De Vitto, por sua vez, criado junto com outras crianças, carente de afeto e meios materiais, tornou-se uma pessoa capaz de enganar quem fosse para conseguir o que queria. Quando se encontraram, já adultos, a diferença estava bem evidente na forma como cada qual se portava diante dos problemas e situações. 

Mas, o que tem a obra de Renato Russo que nos remete a este tema sobre a bondade natural do ser humano? Abaixou, vou levantar a reflexão apresentando quatro canções em que este tema da bondade humana como essência serviu de base para composição de suas letras,  a saber: Indios, Há Tempos, A Fonte e Faroeste Caboclo.


A FONTE

Temos nesta canção um eu-lírico que se vê diante de um mundo indiferente às tragédias alheias e que ao mesmo tempo era capaz de perguntar-se  "quantas crianças haviam sido mortas desta vez". É bom lembrar que na época em que a canção foi criada havia acontecido a chacina da Candelária, o assassinato de oito crianças de rua que ficavam em frente à igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. 

Então,  a pessoa que reflete diante deste mundo se coloca em penitência por não fazer nada e assim, vê-se parte do problema.  Apresenta uma solução aparentemente simples: "não fazer aos outros aquilo  que não quer que seja feito com você". Bom..., continua sendo uma atitude passiva diante do "fazer aos outros o que você gostaria que fizessem por você", mas pelo menos seria uma passividade do bem, onde na preservação de si, não se faria mal a outrem, numa espécie de contrato social, aliás, o que também foi proposto por Rousseau.

Renato Russo vai além na reflexão... Quer buscar no próprio indivíduo a solução para resolver também problemas coletivos e sociais, porque a solução de um abarca a solução de outro. Quer ir, portanto, até a fonte. 

É um título bastante sugestivo, primeiro porque nos lembra a origem (fonte) do problema, que é cada qual individualmente. Trabalhar o indivíduo "ajuda pra caramba", chegou a afirmar em certo momento Renato Russo. Identifica, portanto, a "fonte" do problema.  Alem disto, o título trabalha com a ideia de fonte (d'água) como expiação de toda culpa. A pessoa dar-se conta de que é parte do problema é um passo importante para reverter o quadro e se tornar fonte da solução. Nesta expiação de culpa tem o elemento água,  que simboliza a limpeza. Como escrevi anteriormente, Renato Russo se destaca como letrista, entre outras coisas, por ter ideias sistemáticas, e apresentar a água como elemento de purificação é uma delas, fator que aparece em diversas canções. 

A fonte é também um título sugestivo quando Renato Russo vai à mitologia grega. Os versos a seguir são referências diretas a duas fontes que se encontravam na entrada da caverna de Trofônio, em Labadeia na Beócia. Uma se chamava Lete, que fazia esquecer das coisas passadas, e outra, Mnemonese, que permitia lembrar.

"...Ao lado do cipestre branco

A esquerda da entrada do inferno 

Está a fonte do esquecimento 

Vou mais além, não bebo desta água 

Chego ao lago da memória 

Que tem água pura e fresca

E digo aos guardiões da entrada 

Sou filho da terra e do céu...

...Dá-me de beber que tenho uma sede sem fim..."

O eu-lírico recusa beber da água da primeira fonte e pede água da segunda, da qual tem "uma sede sem fim". Com isso traz a ideia de que o mal está sempre à espreita e se descuidar dele é o primeiro passo para perder a bondade natural.  Beber desta água deve ser atitude constante. A maldade começa com o esquecimento das coisas boas que habitam o ser humano (essência) e o descuido é parte da posterior passividade diante do mal aludida no início da canção (indiferença) bem como é parte das más ações praticadas...  Então, tudo isto se torna um grande câncer. É bom trazer aqui a lembrança do filósofo Sócrates de que "a maldade é mais veloz que nós". A princípio parece contrariar a tese da bondade humana de Rousseau, mas ela corrobora, uma vez que se refere ao fato de que devemos estar vigilantes para preservar a nossa boa essência. 


HÁ TEMPOS 

Esta canção começa mostrando alguns dos processos emocionais negativos que perpassam a situação humana, citando uma geração "herdeira da virtude que perdemos" enquanto humanidade. Aqui, Renato Russo volta a lembrança ao nobre selvagem de Rousseau, o ser humano puro e livre dos males, males estes advindos de uma competitiva e opressora sociedade.

O verso " Não me lembro, não me lembro", de forma repetida, aparece como tentativa desesperada de voltar a lembrança a um tempo muito, muito distante. Há Tempos a humanidade abriu mão de sua boa essência original e natural, se colocando muito distante dela.

Quando usa o verbo "disseste", no verso "disseste que se tua voz" na segunda pessoa, o eu-lírico mostra que com a outra pessoa acontece o mesmo que a si, vive o mesmo desespero. E a humanidade partilha tais dores e cada qual as sentem juntos, e dores individuais se transformam em dores coletivas.

Na parte final, o compositor tenta trazer uma solução, indicando que, ao contrário do que se possa pensar, a liberdade está na disciplina, que compaixão não é fraqueza, é antes, fortaleza, pois é preciso ser forte para perdoar e sentir a dor do outro. Por fim, indica que é preciso coragem para ser bom, quando o caminho mais fácil é buscar o mal. (Sócrates)

Então nos apresenta o poço de água limpa, onde novamente está a água como elemento de purificação. Acontece que poço nos remete a algo que é fundo,  difícil de alcançar, o que traz a humanidade dificuldades imensas para voltar às origens e encontrar novamente a bondade natural.

E o mesmo acontece com cada um individualmente, cada qual tem dentro de si este poço, cada qual já é conhecedor do bem... Difícil é chegar ao fundo dele, beber desta água e banhar-se nela.


"ÍNDIOS"

Esta é a canção mais explícita sobre o tema da perda da inocência e a relação de Renato Russo com a visão do nobre selvagem de Rousseau, ideia traduzida por versos como "não ser atacado por ser inocente".

O fato do título "índios" vir entre aspas demonstra que Renato Russo não está falando sobre índios especificamente, a figura surge como uma metáfora do ser humano ideal, por ser a vida indígena a mais aproximada do modelo de ser humano natural, portanto boa em sua essência.

A canção parte do contexto histórico de um povo, no caso, o indígena brasileiro, para falar do individual. Do mesmo jeito que nossos indígenas acreditaram no europeu que aqui chegou, recebendo com sua pureza de espírito, sendo enganado e massacrado por isso, também o engano é o método utilizado nas más ações praticadas contra os "ingênuos", cabendo também aspas, uma vez que o termo mais adequado seria genuínos.

Numa época em que se discutia na Europa se indígena era dotado ou não de alma, se era gente ou animal, Rousseau via neste povo e sua forma de viver a expressão mais humana e correta de todas as formas existentes. Sua relação com a natureza e o outro, fazia deste povo um exemplo para a humanidade. Estamos então entrando no campo da ética e da moral, sejam elas na vida social (modo de viver) ou na conduta individual (como nos colocamos diante do outro), se somos ardilosos ou genuínos, nas mais diversas situações, inclusive nos relacionamentos amorosos.

O poema Oswald de Andrade ilustra bem esta situação ao afirmar:

" Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio...

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio teria despido o português. "

Esta piada em forma de poema corrobora a ideia de que teria sido melhor para a humanidade se ao invés do europeu subjugar o índio aos seus modos, tivesse o índio convencido o europeu sobre sua forma de viver como a melhor possível,  com sua ética, seus costumes, sua genuinidade. 


FAROESTE CABOCLO

A frase "Não tinha medo o tal João de Santo Cristo era o que todos diziam quando ele se perdeu" cumpre nesta canção um início informativo importante. Aqui, Renato Russo já caracteriza o personagem principal quanto à essência e natureza. Mostra-nos um corte do momento da transformação de Santo Cristo, entre a coragem (não tinha medo) e o perder-se.

Primeiro, faz-se necessário destacar a função do substantivo medo e do verbo perder. Medo está colocado aqui como origem do mal (perder-se). Antes de perder-se, supõe-se por obviedade, que havia coragem, destemor e, junto com tais atributos, bondade, pois não conhecia o mal. A inocência fora perdida em algum momento. E o próprio autor se encarrega de esclarecer versos adiante este momento crucial de transformação quando informa a morte do pai pelos soldados. 

Curiosamente, em "O Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, no momento do julgamento de Lampião em que a compadecida advoga em seu favor, o próprio Cristo que julga torna seu advogado alegando que Lampião presenciara na infância a morte do pai pelos soldados do império, e muito do que fizera no futuro advinha deste momento da infância. Em outras palavras, os acontecimentos passados influenciaram no que haveria de se tornar Lampião. Renato Russo repete a compadecida ao "defender" seu personagem João de Santo Cristo, além de citar outros momentos de sua trajetória into-juvenil, tal como aconteceu com o personagem de Dani de Vitto no filme Gêmeos, Mórbida Semelhança. 

Em outras composições de Renato Russo aparece a ideia do medo como origem do mal, o que demonstra uma sistemática de pensamento. Está, por exemplo, em Há Tempos, no verso "ter bondade é ter coragem"... Raciocínio inverso nos informa que maldade é temer, ou seja, o mal origina-se nele, no medo. Em "Fátima" acusa a a humanidade de se perder no "meio de tanto medo de não conseguir dinheiro pra comprar sem se vender". Já em "Quando o Sol Bater na Janela do Seu Quarto", ele afirma que dor (mal) vem do desejo de não sentir dor (onde reside o medo). O medo antecipa a dor e o sofrimento, por consequência antecipa o mau ato.

O fato é que nesta narrativa/canção o medo sempre impulsionou João de Santo Cristo em suas ações mais moralmente questionáveis e voltadas para o mal. Os momentos livres de tais tormentos e medos foram seus momentos mais felizes e norteadores da boa conduta e da boa intenção. Mas o medo sempre voltava: o medo de perder Maria Lúcia, o medo do General (aquele de dez estrelas), o medo de Jeremias, o medo da pobreza, o medo de de ter o mesmo fim de seu pai... Cada medo antecipa algo de ruim para João de Santo Cristo. E assim acontece também com outros personagens de Faroeste Caboclo, cada qual com seus medos. Maria Lúcia ficou só quando Santo Cristo ficou fora um tempo e o medo a levou aos braços de Jeremias e, ele próprio foi levado a atirar pelas costas por covardia.

O que interessa, entretanto, para nossa reflexão, é o fato de João de Santo Cristo ser o que é com suas transformações. Ele foi moldado para lutar contra a sociedade que o fabricou para ser assim. Ter essência boa é um ponto de partida e isso precisa ser entendido quando se fala no nobre selvagem de Rousseau e não um ponto de chegada. Estamos falando em uma condição pré-existente. Assim, os versos finais também são reveladores e trazem a redenção de Santo Cristo ao informar suas intenções: "falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só faz sofrer". Precisa intenção mais nobre?...



ESSENCIALISMO X EXISTENCIALISMO

A tradição filosófica traz vários embates teóricos e, entre eles, está a discussão sobre a condição humana. Por muito tempo os filósofos tratavam a questão sobre a perspectiva da existência de uma natureza humana pré-existente. Apenas há alguns séculos um grupo de filósofos começou a analisar a questão sob a ótica de que não possuímos natureza pré-existente, ou seja, a existência precede a essência, antes existimos e a forma de existir é que definirá o que seremos. Chegamos à escola filosófica chamada existencialismo.

Dizer que a existência precede a essência é o mesmo que negar que exista uma natureza humana pré-existente. Então, nos coloca priordialmente como um papel em branco e que, cada ação, cada passo, não são determinados por uma força ou uma consciência existentes em nós a priori antes mesmo de nascer, comum a todos. Tudo o que acontece é fruto de uma consciência a posteriori, ou seja, a partir da existência.  Assim, não havendo força pré-existente que nos conduza, não há a quem culpar senão a nós mesmos, pois não existe tendência ou propensão, seja para o bem ou para o mal, quando um ato for praticado. Nós somos sujeitos livres e conscientes de nossas ações. Então, a essência se forma de maneira individual, a partir da existência e não o contrário. Assim, para o existencialista, não é a essência um fator determinante que conduz e molda nossa existência, é antes, esta quem dará cores ao papel em branco, aplicará nuances e,  só assim, determinará então aquilo que seremos.

Rousseau pertence ao grupo dos essencialistas, dos que acreditavam que existe uma essência que precede a existência. Não só acredita nesta essência, como a coloca como base para sua construção filosófica, pois parte do princípio que a existência do sujeito o transforma em alguém "pior" do ponto de vista moral, porque se vê em constante competição com outros sujeitos, precisando inclusive de um contrato social para estabelecer limites. Em outras palavras, a sociedade corrompe o bom sujeito, a quem chamou de nobre selvagem. Quanto mais primitivo for o homem, melhor ele será, quanto mais "civilizado", pior.

Afirmava que a origem da sociedade civil começou quando um primeiro cercou um pedaço de terra e disse: isto é meu; e não houve ninguém para contestá-lo. Ao contrário,  os outros fizeram o mesmo. Criou-se a propriedade individual, depois vilas, cidades, países... enfim, fronteiras e a defesa delas e de um povo. Vieram as guerras, cada qual defendendo o que julgava ser seu. Com a sociedade civil, então,  surgiu o grande mal. Para Rousseau, podemos dizer, existe uma boa essência, mas ela infelizmente é atropelada pela existência. 

Acontece, por outro lado,  que há filósofos essencialistas que defendem que a maldade é a verdadeira essência humana e a existência deste humano com suas escolhas apenas corrobora esta essência. A frase de Sócrates sobre a velocidade da maldade seria a aplicação prática do que verdadeiramente somos. O nome de maior vulto desta corrente de pensamento é Thomas Hobbes, que afirmou ser o "homem lobo do homem", uma alusão a esta natureza pré-existente afeita a esta entredevoração e ao que considera maldade humana natural. Assim, para Hobbes somos propensos a ser maus. Temos então a vertente essencialista com visões contrárias do a natureza humana pré-existente, e a vertente existencialista, que afirma a neutralidade, quando fala da inexistência desta natureza. 

Em "Os Anjos", Renato Russo apresenta uma espécie de receita, onde usa temperos ruins, tais como estupidez, mentira, preguiça, ódio, inveja... E coloca tudo numa forma... Está fabricando o ser humano como quem faz o bolo. Parece estar concordando com Hobbes, pois a essência do ser humano é o conjunto de seus "temperos" e atributos. Chega a afirmar em um verso que "a maldade agora não tem nome", tamanho o horror que o poeta presencia.

No entanto,  o verbete "agora" no verso dá ideia de algo momentâneo, não de algo perene, como seria a essência. Esta volatilidade é atributo da existência, volúvel ao momento, mesmo que este seja um longo período. Ao afirmar que a humanidade está mau, não quer dizer que ela é mau por natureza, afinal, "não é a vida como está e sim as coisas como são", tal e qual Renato Russo afirmou em "Meninos e Meninas".

As últimas estrofes de Os Anjos tentam trazer o ser humano para seu lugar de origem, sua essência primordial, com frases como consertar a asa quebrada (se redimir) e voar para bem longe (afastar-se da maldade e voltar ao bem, que está distante), para então afirmar: "só nos sobrou do amor a falta que ficou"

O amor é visto como algo bom, de nossa essência... Escolher não amar é afastar-se desta essência, como diria Santo Agostinho, e viver o não-amor/desamor é uma escolha que contraria esta essência. Raciocínio lógico, se o que ficou foi sua falta (do amor) é porque ele existe, pois o que falta existe em algum lugar e a sua não prática não mata sua existência, apenas está em algum lugar, amortecido ou esquecido. 

Por fim, o título "Os Anjos" nos coloca num lugar que representa pureza e bondade. A figura angelical bem poderia soar como a típica e costumeira ironia do poeta, mas não parece ser o caso. É antes a manifestação e representação de uma posição em que a humanidade poderia estar e abriu mão. Então, onde Renato Russo parece estar em concordância com as ideias de Thomas Hobbes, apresentsndo uma receita recheada de condimentos ruins, abandonando Rousseau, na verdade está reforçando seu apreço e concordância com o filósofo francês, não sem antes passar pelo existencialismo quando percebe que os temperos são escolhas feitas e não o condicionamento de uma má natureza. Renato Russo está mostrando o que vê, mas acredidando numa essência perdida que não consegue renegar como fator pré-existente e de regresso.

Obviamente, não há como afirmar que Renato Russo tenha pensado em Hobbes, Rousseau ou nos existencialistas quando compôs a canção, mas o importante aqui é que ela serve bem como ponto de partida para a reflexão sobre a condição humana e suas contradições. 


Renato Russo: canção e filosofia

 Renato Russo e as conexões com a filosofia.

Rousseau disse que Maquiavel,  fingindo dar lições aos príncipes, dava lições ao povo. O intuito desta postagem não tem a mínima pretensão dar lições, mas quer fingir que fala de filosofia, falando de Renato Russo e fingir que fala de Renato Russo falando de filosofia. 

O intuito não é o de simplesmente interpretar canções, mas identificar quais filósofos e concepções filosóficas estão presentes de forma mais presente na obra.

Renato Russo foi um compositor/letrista diferente da maioria, entre outras coisas, por apresentar em sua coleção de canções algumas ideias sistemáticas, ou seja, um discurso coerente em que ideias que surgem numa canção voltam em outras. As músicas (letras) não são obras que acabam em si mesmas, as ideias repetem-se e se sustentam, alimentando uma forma de pensar como base da obra como um todo.

Em vários textos, a partir desta postagem, neste blog, vou trazer algumas destas ideias com olhar filosófico sobre a obra, trazendo quais as fontes alimentadoras e quais aspectos filosóficos são destacados na obra do letrista.

Por enquanto vou explicitar quais são esses aspectos e depois dissertarei sobre cada um separadamente em postagens diferentes, a saber:

- ROUSSEAU e a bondade natural que aparece como base de pensamento em obras como Faroeste Caboclo, Há Tempos, Indios e A Fonte.

- BERTRAND HUSSERL, o ecocentrismo, a política voltada para as causas e o pacifismo.

- NIETZSCHE e desconstrução do apego ao que faz mal, ao que nos aprisiona... Tais ideias aparecem em Sereníssima, Será, Flores do mal...

- A ÉTICA como ponto de partida da obra, sendo foco principal, e a ESTÉTICA como linha auxiliar.

- A ESPIRITUALIDADE como base da vivência. 

- O conformismo ESTÓICO no que diz respeito às coisas do amor, evidenciado na maioria das canções sobre o tema.

- A GUERRA como algo a ser combatido e inexplicável como solução para conflitos entre países. 

- POLÍTICA: o fascismo, o terrorismo, a ditadura e a indiferença social. 

- SOCIAL: a questão das crianças e das mulheres.

- HOMOSSEXUALIDADE: As dificuldades em assumir tal condição e o processo ao fazê-lo.

- PLATONISMO como inspiração mais evidente, apresentando nas canções um mundo com suas confusões e problemas, mas sempre também apresentando uma esperança, uma outra situação possível, não raras vezes buscada em outra dimensão, pois, como disse o Renato Manfredini Júnior à mãe certa vez: "eu não sou daqui".

Estes parecem ser os temas mais trabalhados por Renato Russo e é em cima deles que faremos nossa abordagem, trazendo para o enfoque da filosofia. Há muitos elementos que passam despercebidos quando ouvimos tal  e tal canção, por desconhecermos a fonte inspiradora, por isto o estudo da obra ajuda as pessoas a se conectarem melhor com ela. Com formação em filosofia, pretendo fazer este enlace e auxiliar o leitor do blog a se conectar de forma diferente a que está acostumado e oferecer uma nova forma de experimentar estas canções, com novo enfoque e entendimento. 

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